O cão e o vinho
Todos os dias eram assim. Dotado de uma audição muito bem apurada, ouvia todas as vezes, quando a faxineira do condomínio, vinha-lhe à porta, deixar o jornal do dia, logo que este chegava. Não que esta tarefa fizesse parte no seu rol de obrigações naquela função, mas gostava de ser gentil com os moradores, e no fundo, imaginava ser uma forma de ganhar a simpatia daqueles que viviam em seu local de trabalho. Não falhava um dia na missão que havia designado a si mesma, com exceção dos domingos e feriados, quando tinha a rara oportunidade de estar em casa, junto aos seus. Ao contrário do proprietário, que em algumas ocasiões, mal ouvia o soar da campainha, ele estava atento a todos os ruídos e sinais, como se dentro de seu esguio corpo de cão, houvesse uma antena orgânica, fielmente sintonizada em tudo que viesse a ocorrer por ali, não apenas no interior do apartamento, mas também pelos seus arredores. Não havia carros maiores que passassem pela rua, moleques assobiando, vizinhos conversando alto, ou passos nos corredores, que passassem despercebidos aos ouvidos e sentidos, aparentemente interligados a um emaranhado sistema de fios invisíveis, que os conectavam ao mundo de uma forma bem diversa do que foi possível a espécie humana. Antes mesmo que o jornal fosse deixado ao chão, o exímio farejador, já se postava à porta, como se fosse de sua responsabilidade, abri-la e apanhar o jornal diretamente das mãos da entregadora. Mas sua intervenção se limitava a choramingar baixinho com o focinho no chão, como se viesse a lamentar o fato de estar diariamente impossibilitado de tocar e agradecer com os olhos a gentileza daquela empregada, e logo em seguida, levar as patas ao canto da porta, cutucando-o com alarde, como meio de avisar ao dono, que enfim, o pequeno mundo de papel havia chegado em casa. O que ele então, agradecia com um longo afago na cabeça.
Todos os dias eram assim. Dotado de uma audição muito bem apurada, ouvia todas as vezes, quando a faxineira do condomínio, vinha-lhe à porta, deixar o jornal do dia, logo que este chegava. Não que esta tarefa fizesse parte no seu rol de obrigações naquela função, mas gostava de ser gentil com os moradores, e no fundo, imaginava ser uma forma de ganhar a simpatia daqueles que viviam em seu local de trabalho. Não falhava um dia na missão que havia designado a si mesma, com exceção dos domingos e feriados, quando tinha a rara oportunidade de estar em casa, junto aos seus. Ao contrário do proprietário, que em algumas ocasiões, mal ouvia o soar da campainha, ele estava atento a todos os ruídos e sinais, como se dentro de seu esguio corpo de cão, houvesse uma antena orgânica, fielmente sintonizada em tudo que viesse a ocorrer por ali, não apenas no interior do apartamento, mas também pelos seus arredores. Não havia carros maiores que passassem pela rua, moleques assobiando, vizinhos conversando alto, ou passos nos corredores, que passassem despercebidos aos ouvidos e sentidos, aparentemente interligados a um emaranhado sistema de fios invisíveis, que os conectavam ao mundo de uma forma bem diversa do que foi possível a espécie humana. Antes mesmo que o jornal fosse deixado ao chão, o exímio farejador, já se postava à porta, como se fosse de sua responsabilidade, abri-la e apanhar o jornal diretamente das mãos da entregadora. Mas sua intervenção se limitava a choramingar baixinho com o focinho no chão, como se viesse a lamentar o fato de estar diariamente impossibilitado de tocar e agradecer com os olhos a gentileza daquela empregada, e logo em seguida, levar as patas ao canto da porta, cutucando-o com alarde, como meio de avisar ao dono, que enfim, o pequeno mundo de papel havia chegado em casa. O que ele então, agradecia com um longo afago na cabeça.
Ele era um animal vistoso, muito bem cuidado, usava perfumes, cosméticos, e tinha direito a um profissional de saúde vez ou outra, ou quando seu comportamento causasse alguma estranheza naquele que sempre fizera muito questão de bem tratá-lo. Enfim, viviam juntos já alguns anos, e foram se tornando dia a dia, bons companheiros, aumentando as razões dos que afirmam que é o cão o melhor amigo do homem. O homem já de meia idade, aposentado, sai pouco de casa, acha o mundo perigoso, pouco decepcionado com os amigos e os amores, e com uma renda mirrada, vez ou outra participa em eventos públicos, festas, muito raramente, um filme no cinema lá uma vez ao ano, às lojas, quando já não se pode mais adiar. Mas na maior parte do tempo, prefere mesmo o conforto do lar, onde também não se vê livre de ocupações. Faz sua própria comida, lava suas roupas, passa, varre e escova, e administra bem o que podemos chamar de lar. A casa, bem cuidada, proporciona considerável conforto, porém sem luxos ou excessos. Seus dias transcorrem entre uma caminhada pelo parque florestal próximo, idas ao mercado, padaria ou farmácia, filmes na televisão, leituras de jornais, revista, um romance ou ficção de vez em quando, além do amor dedicado ao seu companheiro quadrúpede e peludo, que está sempre por perto. Quando a noite se aproxima, em ritual quase religioso, abre uma garrafa de vinho, com a qual se delicia por algumas horas. É quando o cão torna-se mais que um amigo, um confidente. É quando ouve seus desabafos, planos e frustrações, ladainhas dos amores que teve, e do que não tem, das viagens que fez, e das que sabe que jamais fará, das oportunidades perdidas, dos dias que a vida ousou lhe proporcionar. Das saudades e dos desejos. Da paz e da guerra. Do passado e do futuro. O vinho cora-lhe o rosto, esquenta-lhe o peito, e torna-o falante. O cão o observava atentamente. Quando imaginava estar cansando o companheiro com falações sem fim, procurava desculpar-se, ora citando Horácio, segundo o qual, “o vinho revela os sentimentos”, ou nos momentos em que a solidão mais parecia pesar-lhe, lembrava Napoleão, ao dizer que vinho “nas vitórias, é merecido, mas nas derrotas é necessário”. O cão parecia entendê-lo e eram muito raras às vezes em que ouvia com desdém os discursos do homem. Depois de tanta proximidade, e tanto tempo de convívio a impressão mesmo que se tinha era que o cão estava ali entendendo palavra por palavra, história por história, que ouvia incansavelmente dia após dia. Alegrava-se quando o dono se exaltava, narrando alguma boa aventura do passado, entristecia-se, deixando cair as orelhas e abaixando o pescoço, quando ouvia algo que em forma de lamento ou lamúria. Apesar da classificação de vira-latas, por não ter uma ascendência conhecida, resultado de misturas que se processaram por uma infinidade de anos, era muito bem cuidado, como se de raça nobre se tratasse, além de parecer ter retido para si toda a sabedoria que carregaram seus antepassados, pois seu olhar leva a expressão de que compreende tudo que vai ao redor, como se apenas a ausência da fala fosse a causa da impossibilidade de um diálogo com seu dono. Tem estatura mediana, corpo musculoso, o peito branco e o resto do corpo coberto de um pelo castanho espesso e curto, e anda pela casa com uma elegância rara. Possivelmente teve por ancestrais algum cão guia ou cão de guarda, pois além da robustez, e da expressão dura, que geralmente carrega, possui uma fidelidade em relação ao dono, dificilmente encontrada quando a relação se dá apenas entre os homens. Aos mais observadores, a relação entre aqueles dois seres de espécies diferentes poderia despertar muitas invejas em algumas relações sanguíneas, constituídas em forma de família.
A rotina diária não se alterava muito. Pelas manhãs, faziam os dois, uma boa caminhada, ocasião, inclusive, em que o homem conheceu uma rapariga, com quem já há alguns meses se encontrava, geralmente uma vez apenas a cada semana, pois não era lá o que podemos chamar de uma relação apaixonada, além da falta de tempo da moça, que cuidava dia e noite da mãe doente. A caminhada enchia o cão de alegrias, era o momento em que poderia usufruir do sol e do vento por mais tempo, pois gostava de correr ao ar livre, a vida no Condomínio, comparada aos prazeres do parque, era bastante monótona. Já em casa, o homem se encarregava da refeição dos dois, que muitas das vezes, era seguida de um breve cochilo, para que pudessem recompor suas forças e energias para o resto do dia. Normalmente nestas cochiladas durante o dia, o cão dormia colado aos pés do homem, que geralmente lhe acariciavam. Despertos, o homem abria o jornal, e o companheiro parecia acompanhar as leituras, observando atentamente cada fotografia, como se quisesse extrair delas todo o significado que não pôde arrancar das palavras, do texto. Assistem televisão, brincam, e quando a noite cai, os olhos do homem brilham, a língua, desassossegada, mexe-se entre os dentes e lambe os lábios secos. É hora de abrir a garrafa e tomar o primeiro copo. Tomava o primeiro, o segundo, e empolgava-se, a voz mudava de tom, tornava-se mais aveludada, mais macia. Depois de já alguns copos, lembrava os filósofos, a música, a poesia, a arte e a política. Lembrava dos amores. Sorria e chorava. Enchia outro copo, e o vinho descia pela garganta, aquecendo, numa reação em cadeia, um corpo inteiro. Eram horas de fala, lembranças, gracejos, angústias, idéias, planos e sonhos.
Em um destes momentos, o homem sentindo-se tão próximo do cão, e tendo-o como um companheiro privilegiado, resolve servir-lhe também uma tigela de vinho. O cão não se fez de rogado, deu um primeiro trago, e imediatamente, engasgou. Tossiu como se jamais fosse se aproximar daquela estranha bebida, tão diferente da água que está tão acostumado a beber. Mas inesperadamente, como se o mal em bem houvesse se transformado, dá longos goles na bebida, como se fosse o melhor sabor que já houvesse experimentado. O homem, a princípio, assusta-se, não se sabe exatamente, se consigo mesmo, ou com cão, mas acaba servindo mais uma tigela, e depois outra, que deixa por fim, o canídeo completamente embriagado. A partir dali, não haveria mais um dia sequer em que o cão não lhe faria companhia também nas bebedeiras, e mais incrível do que o gosto que o animal sentiu pela bebida foi a rapidez com que se acostumou a ela. Ousasse o homem deixar de servi-lo, que teria em casa um animal desassossegado, farejando entre o tablado da mesa e o resto dos copos, as garrafas no armário, na esperança de encontrar sequer uma gota da doce bebida. Mas o dono acabou rendendo-se aos desejos do animal, tanto por senti-lo mais amável após o vinho, como por sentir-se responsável pelo hábito que havia despertado no pobre cão. Além do mais, não suportava vê-lo sofrer. Certo é que acabaram curtindo juntos, uma série de porres e pileques. Vendo o homem gesticular, recitar poesias, imitar personagens, com o tempo, o animal foi também desenvolvendo algumas performances, dançava, encenava coreografias para os textos ouvidos, e eram raríssimas as ocasiões em que apresentava alguma indisposição, mal estar, ou algum tipo de ressaca. Parecia estar usufruindo grandes prazeres com a bebida de Dionísio. O homem, em algumas ocasiões, imaginando que o amigo pudesse estar saturado de só ouvir feitos humanos, heróis da nossa espécie e história, procurava vangloriar também a natureza do amigo. Dizia ter sido sempre simpático aos cães. Deram contribuições infinitas à edificação de nossa civilização, disse. Vocês cães, em alguma particularidade de nossa história humana, fizeram a nós, e nós geramos vocês. Ao longo de milhares de anos, vocês evoluíram enquanto espécie, a partir das especializações que nossas necessidades demandavam. Por isso, hoje, temos centenas de raças distintas espalhadas pelo mundo afora. Temos cães que guiam os homens, que guardam suas vidas, famílias e bens, cães farejadores, que salvam inúmeras vítimas em meio aos escombros, cães caçadores, cães que guardam e dirigem rebanhos. Cães que aliviam solidões domésticas. Cães que encontram quem há muito foram dados como desaparecidos. Certamente, seríamos menos humanos, não fossem suas riquíssimas contribuições desde nosso passado mais remoto, discursava com entusiasmo o homem. O cão parecia emocionar-se. Bebiam os dois mais alguns tragos de vinho. Bebia o homem no copo de cristal, e o cão em tigela de plástico. Põe o copo sobre a mesa, respira fundo, como a tomar fôlego e continua. Deveriam saber os cães, que também tem a sua história na história que fizemos. Servem a nós com tanta fidelidade e utilidade, que não seriam quem são, não fosse a história humana em seu caminho. Pega um livro na estante, abre-o, mostrando as gravuras. Era um grande livro ilustrado sobre cães. Um dos maiores heróis da história dos cães a partir da história dos homens é o cão Barry, um São Bernardo, que salvou 40 pessoas perdidas na neve, nos Alpes suíços, entre l800 e 1812. Imagine o prestígio que usufruiu. Os homens ergueram um monumento em sua homenagem em um cemitério para animais na França, e seu corpo está preservado, mumificado no Museu de História Natural em Berna, na Suíça. Os olhos do cão se enchiam de alegria, e o homem não saberia onde encontrar outra tão nobre e honrada companhia. Aquela amizade nunca estivera tão selada. E prosseguia. Em 1800 os cães guiaram mais de 40000 do Exército de Napoleão, pelos mais perigosos desfiladeiros dos Alpes, e nenhum deles de perdeu. A fama destes cães à época correu o mundo. O homem acaricia as orelhas do animal, faz um breve silêncio, enquanto observa a luz elétrica que passa por sob o vão estreito da porta. O cão mira o jornal dobrado sobre o sofá. Tem os olhos fixos. Estão a pensar. O vinho. O copo. A tigela. Um trago, outro trago. É difícil para nós humanos, imaginarmos que tipo de reação este vinho tinto poderia proporcionar a este cachorro, sabendo que mesmo entre nós, seus efeitos variam bastante. Mas ele parecia estar no melhor dos mundos, não só pelo prazer que a bebida lhe causava, como pelos mimos que constantemente lhe fazia o dono, enquanto declamava os poetas, que ia arrancando da estante, recorria aos pensadores, visitava a sabedoria dos grandes, mas não esquecia o amigo, o qual considerava o representante de uma espécie, que em muito ajudou a traçar o perfil da civilização e da história dos homens. Vocês, cães, estão nas pinturas das cavernas, como testemunho da dedicação mais antiga aos caçadores pré-históricos, a deusa Neith, dos egípcios, esposa de Rá, a deusa da caça, a que abre os caminhos, tem por animal sagrado, o cão. Pela longa Idade Média, vocês deixaram vestígios, seja nos brasões de grandes famílias, na Heráldica, nas gravuras. Assim como foram também, por muito tempo, o tormento dos homens. Cérbero, o cão de três cabeças, com o pescoço rodeado de serpentes, o guardião do Tártaro, o inferno dos gregos, era amável com os que chegavam, mas implacável com os que pretendiam de lá sair. Devorava-os. Ajudava a tornar a morte e o inferno, eternos. Talvez seja, entre todos os cães, o mais temido. O cão estremece, o homem baixa os olhos. As origens do mito, a lenda, talvez remetam a algum tempo perdido na memória dos homens, nas lacunas da história, em que a relação entre os homens e os cães não tenha sido tão amistosas. Talvez em um período onde os canídeos, ainda não tivessem sido vítimas de uma domesticação fatal, que os tirou da condição de selvagens, colocando-os a serviço das demandas humanas. Talvez a imagem do cão ameaçador, incorporada pelo mito, remeta à lembrança remota de uma época esquecida, em que os cães possam, quem sabe, terem se rebelado contra a submissão total. O homem adormece.
Na manhã seguinte, o animal, enrolado sobre o tapete felpudo, que devido ao longo tempo de uso, já se encaixava perfeitamente em seu corpo, levanta quase de sobressalto, ao sentir o primeiro feixe de luz iluminar seu focinho. Corre até a porta dos fundos, e logo percebe que o jornal ainda não chegou. Seu dono continua adormecido, e por considerar que merece mesmo alguns minutos a mais de repouso, resolve andar pela casa, silenciosamente, para que evite incomodá-lo. Vai até a cozinha, lambe as beiradas das garrafas de vinho vazias guardadas logo atrás da porta da dispensa. Sente a bebida molhar sua garganta, levanta a cabeça para o alto, e sacode o corpo, arrepiando os pelos. Em seguida, mordisca alguns pedaços do pão com presunto que fora deixado sobre a mesa. Dá uma volta rápida por todos os cômodos, como a verificar se as coisas estariam todas no mesmo lugar, a certificar-se que novidade alguma havia ocorrido no interior de seu lar, enquanto dormia. Passa em frente o quarto do homem, ia já passando direto, quando alguma força estranha, superior, invisível, incompreensível, parece travar suas pernas. Repentinamente, muda sua rota. Resolve ir ao homem. Ao se aproximar, roça suas pernas, que pareciam que estar mais frias que de costume. Propõe alguma brincadeira ou gracejo, mas não há respostas. Resolve, então, puxar com os dentes os cobertores, não havia algo melhor para despertar o amigo, que a princípio sempre se irritava, mas em seguida, acabava se divertindo com aquilo, sentindo-se menos só. Daquela vez, porém, não esboçou a menor reação. O cão, já a desesperar-se, sobe até a cama, e começa a lamber o dono. O corpo está inerte e duro. Os olhos cerrados. Estava morto. Ele sabia o que aquilo significava. Não teria mais o amigo. Quando a moça dos jornais entra pelo corredor e se aproxima da porta dos fundos, o animal corre até ela, e late como jamais o fez, põe-se a correr de um lado para o outro, arranha a porta, e atira-se contra ela. A moça, intrigada com a reação do animal, completamente diferente daquela a que já se acostumou, resolve tocar a campainha, seria inclusive, uma delicadeza com o morador, demonstrar que se preocupava com ele. Mas este nunca responde. Como era funcionária antiga, sabia que por este horário, não havia o homem saído de casa. Esperou um tempo, nunca se sabe, algum sono profundo, um banho demorado, ou algo do gênero. Como ia tornando-se inútil insistir, resolveu aguardar mais um pouco, enquanto daria continuidade aos seus afazeres. Algum tempo depois, quando qualquer atividade iniciada pelo homem, que o teria impossibilitado de atender ao chamado, já teria cumprido o prazo para findar-se, volta então, a campainha. Nada. Vai logo em busca de ajuda. Por fim, quando os homens resolvem por arrombar a porta, assim que esta é aberta, o cão abandona o apartamento. Ali não mais voltaria. Saia convencido, que para o mundo em que o amigo se encaminhou não haveria mais retorno. Lembrou-se de Cérbero, o monstro de três cabeças, que nunca permitia a saída dos que nos Reino dos Mortos ingressava. Abandona, definitivamente, a morada que ocupava desde a mais tenra idade. Não se lembrava quando exatamente tinha chegado ali, mas tinha a certeza de não ter vivido em nenhum outro lugar. Era o mundo que conhecia, e já não o tinha mais. Sai pela cidade.
Num primeiro momento, perambula pelos caminhos já conhecidos, nos quais já havia andado com o amigo agora morto. É tomado de sensações dúbias. De um lado, a dor da perda, não uma dor humana, mas uma dor canina, mais difícil de compreender, por não ser a que sentimos, mas fundamentalmente, um pesado e insuportável sentimento de abandono, que se expressava em um profundo e silencioso choro. Por outro lado, possuía uma rara sensação de liberdade, que era poder atravessar aquelas ruas, sem ter que estar a seguir alguém. Sentia, pela primeira vez, caminhar com seus próprios passos, sendo o dono de sua rota, o senhor do seu destino. Poderia subir, descer, virar à esquerda ou à direita, como bem entendesse. Estava triste, atordoado, e sentia-se livre. Seu dono fizera-o sentir-se um ser importante. Enchia-o de afagos e elogios, relacionando em sua lista de heróis da história, personagens caninos. O animal tinha o pelo bem cuidado, era belo, e beirava a vaidade. Dali para frente, a vida mudaria muito. A liberdade teria um preço, também teria limites. Não mais teria seus banhos com shampoo, suas pomadas e receitas médicas, a fartura das refeições, o aconchego de um confortável lar, e principalmente, as noites mágicas regadas ao vinho. Iria caminhar agora por ruas, avenidas, praças completamente novas e desconhecidas. Teria então, ao seu alcance uma grande cidade a ser descoberta e explorada, sua nova morada.
Nestes primeiros dias, andou quase sem parar, sentia pressa em conhecer os lugares, apenas reduziu o ritmo das andanças, sem jamais abandoná-las, quando percebeu que não teria como conhecê-los, todos. Mas sentia-se um explorador e inquietava-lhe, às vezes, constatar que sua nova e grande morada não estava totalmente a seu alcance. Eram infinitos os lugares impenetráveis, inacessíveis, os muros altos, os imensos portões das fábricas, as vitrines do comércio, os bares, restaurantes, e tudo aquilo que pudesse oferecer algum alimento que lembrasse o que tinha no mundo perdido. Tentar furar alguns destes bloqueios poderia lhe render os mais violentos castigos, chutes, pauladas, pedras, ou conforme o sítio, até mesmo tiros. Fora os grandes perigos que ofereciam o trânsito, com seus motoristas apressados em automóveis cada vez mais possantes, como se a serviço de um provável super-homem. Como se ainda fosse pouco, a visão dos cães praticamente não vêem diferença entre as cores amarela, verde ou vermelha, o que fatalmente impossibilita qualquer leitura proveitosa dos sinais ou semáforos.
Nem sempre era fácil encontrar algum local confortável para pernoitar, em que não fosse importunado por algum chato, alguém sem ter mais o que fazer, alguma criança que não sabe ver o animal quieto, sem lhe dar algumas cutucadas ou beliscões. Em muitas das situações era necessário mostrar os dentes. Além de ter o pelame já sujo, o aspecto recém-adquirido de cachorro de rua ou vira-latas, ainda possuía um porte relativamente robusto, o que lhe servia como proteção em muitas adversidades. A crosta de sujeira que se acumulava em seu pelo e a quase impossibilidade dos banhos eram algo que muito o incomodava. Mas já havia percebido que não era o único nesta situação. Vez ou outra, encontrava um ou outro cão de rua, ou às vezes, grupos deles, com alguns desenvolvia alguma simpatia, e momentos de companhia, com outros, era sempre melhor deixar passar-se despercebido. Como havia diferença entre eles. Alguns eram corpulentos, outros franzinos, uns silenciosos e observadores, outros intolerantes e inquietos. De várias cores, claros, escuros, rajados, e muitos estropiados, mancos, feridos, doentes. Às vezes se reuniam em grandes grupos, em uma praça praticamente abandonada pelos homens, próxima de uma igreja velha. Formavam uma verdadeira concentração. Depois se dividiam, um grupo descia uma rua, outro grupo ia em direção oposta. Não sabemos que tipos de acordos realizavam para que chegassem ao ponto, mas a impressão que se passava era de uma estratégia previamente discutida.
Quando a fome apertava, não havia lata, caixa, lixos, sacolas, que não merecessem ser desbravadas, reviradas. Não era a fartura da vida passada, mas quase nunca era a fome total, sempre havia algum resto, uma sobra, aquilo que para muitos humanos talvez já não mais servissem, ou porque outros deles chegassem atrasados à cata, dada a maior facilidade do cão em encontrar a comida. Havia perdido vários quilos, desde que passou a viver pelas ruas. O mais desagradável era quando abria algum alimento deteriorado, em que o apurado faro fazia franzir-lhe a face, ou a presença de vermes que tornava a situação insuportável. Nunca havia utilizado tanto seus instintos caninos. Os olhos, praticamente em lados opostos, devido a sua disposição na face, permitiam-lhe visualizar o perigo por todos os lados, o faro, fundamental, na obtenção do alimento, os dentes, agora serviam não só para a mastigação, mas também para afugentar o inimigo. As quatro pernas ajudam bem a resolver o problema, quando os dentes já não o fazem. Muitas das vezes é necessário colocar-se a correr.
Fora todas as dificuldades do dia a dia, angustiava-lhe muito a ausência do vinho. Muito de seus problemas vinha resolvendo, bem ou mal, havia descoberto água em uma praça pública, onde era possível banhar-se, mesmo precariamente, sem os perfumes e cremes de um passado que ia se distanciando. Havia como refrescar-se vez ou outra. Desenvolveu meios de driblar a fome, ou acostumara a conviver com ela. Havia aprendido a defender-se. Dia após dia, adaptava-se à nova vida. Mas o vinho, jamais havia tido a oportunidade, de sequer aproximar-se dele. Onde o encontraria? Não seria tarefa fácil. Na maioria das vezes, as pessoas quando vão consumi-lo, o fazem em lugares fechados, geralmente em casa, ou em bares, restaurantes, boates, locais em que muito raramente ou nunca mesmo se permite a entrada dos cães. Os dias foram se passando e a vontade de tomar novamente um gole ou outro da bebida dos sonhos era cada vez maior. Lembrava-se das noites passadas com o seu falecido dono, onde as noites regadas a vinho vinham acompanhadas de muitos afagos, brincadeiras, leituras, música, o aconchego de estar entre quatro paredes, e alguma comida. Eram mesmo bons aqueles tempos. A imagem do antigo proprietário surgia de vez em quando à lembrança, mas nada tão forte, quanto a vontade de sentir outra vez aquele sabor inesquecível. Imaginou que se andasse mais noite adentro, ao contrário do que vinha até então fazendo, andando o dia inteiro e à noite buscando meios de dormir, talvez fosse mais bem sucedido em sua busca pela cobiçada e ausente bebida. E assim o fez. Noite após noite, rodou pela cidade. Potencializou seu faro, de modo a concentrar todos os seus esforços à procura de alguma essência ou aroma que pudesse ser uma garrafa, um copo ou mesmo algumas gotas derramadas na calçada. Seu olfato afinadíssimo levou-o até as portas de bares e restaurantes, onde iniciou uma verdadeira peregrinação. As imagens das garrafas nas prateleiras altas que avistava pelo lado de fora era a visão do paraíso perdido, da terra prometida a ser conquistada, era o sonho que estava ali, próximo dos olhos, porém praticamente inacessível, inalcançável, como para demonstrar ao cão, o quanto poderia ser restritiva a eles, cães, uma cidade construída para os homens. Procurava aproximar-se de algum freqüentador, garçons, seguranças, fazia gracejos, expressão de tristeza e carência que demandavam socorro, pulava, agradava, fazia-se passar pela mais simpática das criaturas, e em vão. O máximo que consegui era arrancar algum pedaço de carne, alguma sobra de mesa, um olhar de piedade, mas da bebida mesmo, nada. Em algumas ocasiões, diante da resistência em abandonar o lugar, os templos onde guardavam seu objeto de contemplação e veneração, chegava a ser vítima de agressões e maus tratos, como ponta pés e vassouradas. Em suas andanças noturnas, encontrou latas de cerveja, onde apesar de ter sido atraído pelo cheiro do álcool, nada que se comparasse à inigualável bebida. Pense como deveria ser difícil para um cachorro de rua encontrar um gole de vinho para beber. Mesmo que encontre um beberrão ou um proprietário de alguns destes estabelecimentos que adquira uma grande simpatia e compaixão pelo animal, como iria passar pela cabeça do indivíduo que o outro se contorcia de vontade de tomar alguma quantidade de vinho. Não conseguimos imaginar uma comunicação possível, por mais que tenha tentado o pobre animal, beirando e roçando os móveis onde se guardavam a bebida. Podemos imaginar que tenha sede, fome, necessidade de carícias, vontade de brincar, alguma pulga ou ferimento que o incomode, mas um desejo incontrolável de tomar uma dose de vinho, não ocorreria a alguém adivinhar. As noites se passavam e as buscas tornavam-se cada vez mais impossíveis, as imagens dos rótulos, o formato das garrafas, a tigela cheia, e o cheiro doce que se escondia em algum canto da memória, tornavam-se às vezes, tormento, lembranças que se apagavam de uma utopia perdida, o sonho desfeito.
Numa noite fria de inverno, quando a lembrança ainda o atormentava, mas já vinha praticamente desistindo das buscas, dado os contínuos fracassos em que suas missões haviam resultado, encontra, ao dobrar uma esquina, de uma hora para outra, um grande evento em uma praça pública, aberta, onde vários jovens se reuniam para ouvir música, cantar e dançar, havia à frente, um grande palco iluminado. Era uma festa bastante animada, e seu faro não se deixou enganar, a bebida preferida pelos jovens aquela noite, era o vinho. Seus olhos se acenderam, sua expressão foi tomada de uma felicidade, que a qualquer um seria possível perceber. Sim. Havia muita gente ali, e um grande número delas, com copos de vinho nas mãos. Choramingou sob alguns pés, mas a estratégia não lhe funcionou. Ao atravessar a praça, encontrou um casal sentado em um banco de concreto, onde os amantes não paravam um minuto sequer de se esfregarem, provavelmente ali a mistura de hormônios e vinhos já começava a apresentar seus primeiros resultados. A boca do homem colava-se á boca da jovem e seus corpos se espremiam vorazmente um contra o outro. Com os olhos fechados, suas mãos percorriam os corpos emaranhados, como às cegas, a tatearem-se no escuro, mas sem perderem o destino, onde desejavam chegar. Nada mais importava aqueles dois a não ser entregarem-se um ao outro, já pouco importava a música ao fundo, os que ao lado passavam, os outros casais, ou a garrafa ainda cheia de vinho, que aguardava ao lado do banco, no chão. Estavam colados um no outro, enlaçados, como se o mundo ao redor não tivesse a menor importância, não mais lhe dissessem respeito. O cão admirava-se. Não era possível depois de tanto tempo, encontrar ali, quando quase já não mais esperava, uma garrafa quase cheia à sua disposição. Deu alguns passos em direção à bebida. Parou. Fixou os olhos no casal. Não seriam obstáculo. Voltou-se para o vinho e não perdeu mais um segundo qualquer. Verteu a garrafa ao chão, cujo líquido se concentrou em uma concavidade do concreto, e ali ficou a beber, euforicamente, toda a poção que derramara. O casal, muito envolvido nas aventuras e peripécias do amor, sequer percebeu o que ocorrera. O animal sorveu o líquido da garrafa inteira. Não ficou uma gota sequer, e quem por ali passasse, talvez soubesse que era tinto o vinho, dada a mancha escura que deixou gravada no chão. Nunca havia bebido com tanta vontade, deliciou-se, empaturrou-se. Sentiu um fogo ardente percorrer todo o seu corpo, e uma faísca de luz adentrou aos seus olhos. As pernas por um instante tremeram, mas em seguida, recuperaram o vigor. Os pelos ouriçaram-se um pouco, e ele deu-lhes uma sacudidela, para ajeitar-lhes o prumo. A música que saía dos enormes alto-falantes incomodava seus sensíveis ouvidos. O coração batia forte. Havia chegado a hora de deixar aquela praça, e saiu a andar pela cidade. Estava feliz, mas não sabia por onde ia, as pernas não lhe davam descanso, e andava, andava, não se dispunham ao freio. A cidade nunca lhe pareceu tão iluminada, e a noite jamais lhe saltou tanto aos olhos. Uma suave canção lhe vem à memória e embala seus passos. Sente não ser deste mundo, e um estranho cansaço abate-lhe a expressão. Mas não para de andar. Sem olhar para os lados, e como se apenas uma vaga lembrança musical o levasse, corre a atravessar a movimentada avenida. Era tarde quando percebeu a velocidade e a violência com que vinha em sua direção o pesado veículo. Era o encontro fatal. O animal desfez-se na pista, o motorista prosseguiu seu caminho. Não parou para olhar.
Marcos Vinícius
Nenhum comentário:
Postar um comentário