sábado, 9 de maio de 2009

A breve história dos ladrões pequenos







A breve história dos ladrões pequenos


Ana, como diariamente o fazia, normalmente no horário de almoço, excetuando em seus breves finais de semana, chegava ao ponto de ônibus, que a levaria para mais um turno de trabalho, na periferia da cidade. Era pontual. Sempre o mesmo horário e os mesmos passos rápidos. Vinha com a sensação de missão cumprida, por ter encerrado um dia de trabalho em uma empresa, ao término da manhã, mas já sentia-se ansiosa por um outro turno que ainda estava por iniciar. Na verdade, tinha quase os passos contados, cronometrados, e o ônibus, em que viajava, que a levava de um trabalho para outro, dificilmente se atrasava. Sabia, portanto, o tempo exato, em que ali deveria aguardar, parada. Aquele ponto, sempre lhe causava certa apreensão, o que é justificável, por ser sempre mais vazio, deserto, e à beira de uma rodovia, ainda que sob a luz de quase meio-dia. Locais onde normalmente os gatunos e ladrões tem mais facilidade de ação, dadas as vantagens de fuga, principalmente, diante de vítimas mais frágeis, como pessoas à pé, em pontos de ônibus, mulheres e velhos. Mas ali chegava, mais um dia, à espera do embarque.

A apreensão inicial acabou por se dispersar, quando encontra no ponto do ônibus, também a espera, uma jovem e um senhor, já com idade bem avançada, nitidamente perceptíveis, não só pelos sulcos profundos no rosto, as teias de rugas, os labirintos de pele ressecada, a flacidez das mãos, mas um olhar cansado, meio esgotado, de quem não mais alimenta ilusões. A jovem, sentada ao lado, também aparenta ter mais idade do que de fato tem. Senta-se um pouco curvada, como se parte grande do mundo, pesasse sobre seu ombro. Sua atenção é fixa, parece não perceber a chegada de Ana. Tem os olhos pregados ao chão. Os cabelos estão mal arrumados, está sem maquiagem, sem cosméticos ou perfumes, e parece, estar também a trabalho. As mãos, com as unhas por fazer, seguram firmemente uma bolsa emborrachada, que trás atravessada ao pescoço.

Ana mantém-se de pé. O velho tosse. A jovem parece despertar de um transe profundo. Faltam ainda alguns minutos para o próximo ônibus passar. Ana dá uns passos à frente. Silenciosamente, olham-se, um ao outro, os três a olhar-se, mutuamente. Sem palavras ou gestos. Um quê de desconfiança, pois de estranhos e desconhecidos se trata, um quê de cumplicidade, dadas as condições em comum em que se encontram, o ponto, a espera, e a solidão. Em seguida, movem-se os três, ao mesmo tempo, como se combinado. Ana aperta a pasta ao peito, a jovem, com as mãos de quem carrega urgência, abraça a bolsa sobre o colo, e o velho pigarreia e parece resmungar. Como demora este ônibus, diz a jovem.

Subitamente, quase do nada, surgem dois homens na estrada. Com passos apressados, se aproximam também do ponto. As pernas do velho, parecem revelar um susto, que o resto do corpo, não fez por demonstrar, movem-se rapidamente, como se neste preciso momento, não precisasse do comando de seu dono e senhor, como se misteriosamente, se movimentassem por conta própria. Talvez, num corpo mais jovem, se pusesse a levantar ou a correr. Ana, que já quase se descontraia, repentinamente, retesa o corpo, as mãos parecem enrijecer. A jovem olha para os dois, com olhar de perplexidade, e ao mesmo tempo, de desafio. Agarra-se à bolsa.

Entre tremores e suores, se anuncia o assalto. Olha aí, se não passar o que levam aí de valor, dinheiro, principalmente dinheiro, morre. Ta escutando? Morre, diz o mais novo. Vamos, sem moleza, passa logo a grana. Se não, vou ter que esquentar o cano. Passa logo, grita. A jovem, contrariada, agarra-se a bolsa, ainda uma vez, antes de entregá-la. Ana parece suar por todos os poros, empalidece. Os olhos do velho se embaçam, e as mãos parecem não encontrar os caminhos do bolso, onde levava a carteira. Treme. Os homens desistem dele, não se sabe se por compaixão, ou pela quase certeza que pouco lucrariam com o velho de calças puídas e sandálias gastas, com os pés quase ao chão. Talvez não valesse a pena. Levam apenas as bolsas das duas mulheres. Uma emudece, estarrecida. A outra está por explodir.

Os bandidos, após a bem sucedida operação, atravessam a rodovia, e dirigem-se para o pequeno bairro em frente, como se não estivessem a fugir, mas indo para casa. Como de fato, estavam. Talvez mesmo em função da crise que não perdoa a ninguém, tenham preferido os ladrões assaltarem nas proximidades de casa, por uma questão de economia, ou mesmo, de comodidade. A jovem, ainda inconformada com tudo aquilo, e observando os homens à distância, num ímpeto, desabafa, Sei lidar com vagabundo, não serão estes a me dobrar, ah, não, diz com fúria. Levanta-se como se partisse para a guerra. O coração palpita forte e o sangue corre veloz pelas veias. As faces coram. Os olhos parecem apontar uma única direção, meio vidrados, meio às cegas. O passo é uma marcha, firme, duro, determinado. Estes não me escapam, diz afirmativa. Estes não me escapam.

Em poucos minutos, pergunta pra um, pergunta pra outro, e acaba por chegar à morada dos ladrões. Aciona, nem se sabe como, a ronda policial, e rapidamente, como se dotada de poderes, que talvez nunca tenha imaginado possuir, e numa velocidade espantosa, faz cerco aos bandidos. O assalto, para eles, resultou-se vexatório. As bolsas foram encontradas por sobre o telhado, e os bandidos, escondidos, no guarda-roupa, protagonizam um triste espetáculo na vizinhança. Normalmente, estes flagrantes, despertam a curiosidade de todos, que querem saber, como foi, onde foi, o que ocorreu, quais os envolvidos, enfim, todos se amontoam para assistir o espetáculo da prisão dos vizinhos encurralados. Casais, crianças, até os gatos e cães, se aglomeram de frente a casa, para saber quem de lá vai sair, e como sairá. Todos de olhos esbugalhados, curiosos, atentos, para assistir, sem perder um lance sequer, do que está a ocorrer. Qual será o desfecho? Adolescentes roem as unhas. Uma mulher chora. Os curiosos que beiravam a cena, só não viraram multidão, pois a ação da polícia foi rápida, uma vez, que provavelmente, não se tratava, digamos, de ladrões profissionais. Não houve resistência. Os bandidos saem algemados, cabisbaixos, e qual não é a surpresa dos espectadores, ao confirmarem o que já se suspeitava. Muitos não imaginavam que o vizinho próximo, homem trabalhador, em seu dia de folga, chegasse a tanto.

Os homens são arrastados por uma forte escolta policial. Todos observam imóveis, serem, os dois, atirados às grades; acompanham passo por passo, gesto por gesto, lance por lance, até os carros, com suas luzes e sirenes, darem a partida. Por fim, voltam, pois as costas, e passam a narrar histórias, versões, todos ali terão alguma para contar. Como pode, quem imaginava, eu já sabia, há quem conheça toda a família e também, os caprichos e os credores. A pequena multidão, eufórica, aos poucos se desfaz. Encerrado o caso, finalmente, Ana e a jovem entreolham-se, e trocam as primeiras palavras. Foi Deus, diz Ana. Foi - responde secamente a jovem. Mas o final que não há que negar, é que estes infelizes conhecerão, onde estiverem, o inferno, dos homens, do qual não poderão escapar.


Marcos Vinícius.

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