O Vôo
Rapidamente adormeceu. Nesta noite, não precisou rolar muito na cama para que o sono lhe dominasse. Encostou a cabeça no travesseiro, deu um longo suspiro, teve ainda algumas vagas e breves lembranças de partes do dia que acabara de viver, abaixou definitivamente as pálpebras, e mergulhou em um sono profundo. Parecia cansado. E dormia tão profundamente, como quem descansava não de um dia apenas, mas de uma vida inteira. O silêncio e a escuridão do quarto protegiam seus sonhos, e nem o ruído distante do relógio da cozinha ou o fraco feixe de luz que por sob a porta passava, poderiam quebrar a sensação, que ali o tempo parara. Naquela noite, dormia sozinho, ninguém que pudesse testemunhar, o quão tranqüilo estava, praticamente não se mexia, as marcas do rosto, que o tempo havia deixado, aparentavam descontração, e os olhos, totalmente fechados, pareciam encontrar o repouso absoluto. As palmas das mãos, descobertas, abertas para o alto, como que a clamar aos céus, ao infinito. A boca fechada, emudecida, aparentemente condenada a um silêncio eterno. De fato, era um sono profundo.
De forma surpreendente, como a ciência ainda não ousou explicar, aquele homem ali deitado, iniciava um longo sobrevôo por sobre o mundo e o tempo. Percorreu em frações de minuto, tempos que foram eternidades. Sentiu a dores de quando veio ao mundo, viveu a sensação de umedecer-se com as lágrimas que primeiro chorou, percorreu os parques da infância, os brinquedos, as gangorras, e as rodas-gigantes. Aprendeu, de uma só vez, as milhares de lições, que lhe foram ensinadas. Adentrou-se pelas fórmulas matemáticas que foi obrigado a decorar. Beijou o primeiro dos beijos, desnudou-se, desfilou por inúmeros corpos, conhecidos e pelos que nunca havia visto ou tocado, sentiu prazer, explodiu-se em orgasmos. Ouviu cânticos. Entoou antigas preces, reviveu velhos pecados. Deleitou-se. Percorreu os caminhos por onde havia passado, as estradas, os campos, as praias, as águas, vagou por sobre o deserto da alma, gemeu pelas dores da carne. Ah... Sobrevoou o mar, quão extenso é o mar. Os montes, os picos, a neblina, os campos abertos, o mato fechado. Sobrevoou as cidades, atravessou oceanos e continentes. Aqueceu-se por aproximar-se excessivamente do sol, tremeu pela proximidade das geleiras.
Bisbilhotou a intimidade dos homens, por sob os milhões de telhados, visitou as moradas dos deuses. Derramou-se pelo sangue, que escorrera das guerras, atirou-se por sobre as culturas, os povos, como a chuva, que traz o alimento, e como os projéteis que levam a morte. Acompanhou a luz, com a velocidade que lhe é própria, a clarear o universo. Incorporou-se em música, adentrou-se pelas nuances da poesia, fez-se imensidão e partícula, percorreu as galáxias, as moléculas e os átomos. Adentrou-se pelo espírito da história. Voava alto, atingia o cume dos céus, depois deixava-se cair, plainando o espaço, e o mundo tornava-se grande, tornava-se pequeno.
Inesperadamente acordou. De súbito. Os olhos se abriram. Tentou levantar as mãos, mas estas não lhe obedeciam. Os olhos, apesar de abrirem-se, pareciam presos às órbitas, e pouco podiam enxergar. Sentia o corpo frio, as pernas geladas. O corpo inteiro não respondia aos comandos e se enrijecia. Uma lágrima salgada escorria pelo rosto e molhava os lábios ressecados. Faltavam-lhe os movimentos, a respiração vinha a parar. Uma sensação diferente porém, lhe percorria os ombros e ele, finalmente, sorria, silenciosamente, timidamente. Das costas, onde a princípio, manifestava-se um ligeiro formigamento, num estalo, rompem-se duas asas enormes, que desvencilham-se da cama, e esticam-se como a testar o vigor e a elasticidade. O corpo se aquece, os músculos se soltam e os pulmões se enchem de ar. As asas se aprumam, e como num passe de mágica, a janela do quarto se abre, e aí então, novamente, se põe a voar.
Marcos Vinícius.
Rapidamente adormeceu. Nesta noite, não precisou rolar muito na cama para que o sono lhe dominasse. Encostou a cabeça no travesseiro, deu um longo suspiro, teve ainda algumas vagas e breves lembranças de partes do dia que acabara de viver, abaixou definitivamente as pálpebras, e mergulhou em um sono profundo. Parecia cansado. E dormia tão profundamente, como quem descansava não de um dia apenas, mas de uma vida inteira. O silêncio e a escuridão do quarto protegiam seus sonhos, e nem o ruído distante do relógio da cozinha ou o fraco feixe de luz que por sob a porta passava, poderiam quebrar a sensação, que ali o tempo parara. Naquela noite, dormia sozinho, ninguém que pudesse testemunhar, o quão tranqüilo estava, praticamente não se mexia, as marcas do rosto, que o tempo havia deixado, aparentavam descontração, e os olhos, totalmente fechados, pareciam encontrar o repouso absoluto. As palmas das mãos, descobertas, abertas para o alto, como que a clamar aos céus, ao infinito. A boca fechada, emudecida, aparentemente condenada a um silêncio eterno. De fato, era um sono profundo.
De forma surpreendente, como a ciência ainda não ousou explicar, aquele homem ali deitado, iniciava um longo sobrevôo por sobre o mundo e o tempo. Percorreu em frações de minuto, tempos que foram eternidades. Sentiu a dores de quando veio ao mundo, viveu a sensação de umedecer-se com as lágrimas que primeiro chorou, percorreu os parques da infância, os brinquedos, as gangorras, e as rodas-gigantes. Aprendeu, de uma só vez, as milhares de lições, que lhe foram ensinadas. Adentrou-se pelas fórmulas matemáticas que foi obrigado a decorar. Beijou o primeiro dos beijos, desnudou-se, desfilou por inúmeros corpos, conhecidos e pelos que nunca havia visto ou tocado, sentiu prazer, explodiu-se em orgasmos. Ouviu cânticos. Entoou antigas preces, reviveu velhos pecados. Deleitou-se. Percorreu os caminhos por onde havia passado, as estradas, os campos, as praias, as águas, vagou por sobre o deserto da alma, gemeu pelas dores da carne. Ah... Sobrevoou o mar, quão extenso é o mar. Os montes, os picos, a neblina, os campos abertos, o mato fechado. Sobrevoou as cidades, atravessou oceanos e continentes. Aqueceu-se por aproximar-se excessivamente do sol, tremeu pela proximidade das geleiras.
Bisbilhotou a intimidade dos homens, por sob os milhões de telhados, visitou as moradas dos deuses. Derramou-se pelo sangue, que escorrera das guerras, atirou-se por sobre as culturas, os povos, como a chuva, que traz o alimento, e como os projéteis que levam a morte. Acompanhou a luz, com a velocidade que lhe é própria, a clarear o universo. Incorporou-se em música, adentrou-se pelas nuances da poesia, fez-se imensidão e partícula, percorreu as galáxias, as moléculas e os átomos. Adentrou-se pelo espírito da história. Voava alto, atingia o cume dos céus, depois deixava-se cair, plainando o espaço, e o mundo tornava-se grande, tornava-se pequeno.
Inesperadamente acordou. De súbito. Os olhos se abriram. Tentou levantar as mãos, mas estas não lhe obedeciam. Os olhos, apesar de abrirem-se, pareciam presos às órbitas, e pouco podiam enxergar. Sentia o corpo frio, as pernas geladas. O corpo inteiro não respondia aos comandos e se enrijecia. Uma lágrima salgada escorria pelo rosto e molhava os lábios ressecados. Faltavam-lhe os movimentos, a respiração vinha a parar. Uma sensação diferente porém, lhe percorria os ombros e ele, finalmente, sorria, silenciosamente, timidamente. Das costas, onde a princípio, manifestava-se um ligeiro formigamento, num estalo, rompem-se duas asas enormes, que desvencilham-se da cama, e esticam-se como a testar o vigor e a elasticidade. O corpo se aquece, os músculos se soltam e os pulmões se enchem de ar. As asas se aprumam, e como num passe de mágica, a janela do quarto se abre, e aí então, novamente, se põe a voar.
Marcos Vinícius.