Já se passaram muitos anos desde
que Armênio atingira a tão esperada maioridade e, junto dela, o primeiro
emprego que iria finalmente, proporcionar-lhe a oportunidade de um salário e as primeiras aquisições com que há muito sonhara. Obviamente, não
eram poucas as suas demandas e desejos de consumo em uma comunidade totalmente
influenciada pela grande propaganda. Antes, porém, que qualquer outra coisa, os
primeiros investimentos que faria, seriam um relógio de pulso, um paletó e uma
gravata, que lhe acompanhariam, algum dia, ao casamento e ao altar. Sempre
imaginou que o relógio de pulso fosse um atributo que pudesse enfim, dar-lhe
ares de adulto, homem pronto, afinal, esta maquinazinha de ponteiros dourados,
colada ao braço, não é coisa que carreguem as crianças e os mais jovens,
alheios à lógica dos tempos contados, numéricos. Isto é coisa para os que já
tornaram-se adultos, desvestiram-se das meninices e já carregam
responsabilidades que a vida, inevitavelmente, proporciona. Quanto aos demais
acessórios, o paletó e a gravata, vê neles, uma espécie de amuleto, um ritual
de passagem que um dia o conduzirá a ser um homem completo. Afinal, como
aprendera, com a totalidade da parentalha, o casamento era um
pressuposto-chave, para que pudesse enfim, constituir a família. Assim fizeram
seus pais, tios, primos e avós. Ele não faria diferente. Não seria ele a romper
as antigas tradições que deram-lhe laços, sangue e nome. Armênio guardava bem
fresca a memória deste tempo, ainda que décadas já tivessem passado, encontrar-se
mais próximo da terceira idade do que da juventude e ter perdido parte das
ilusões; mas ainda tinha fechado em seu guarda roupas, o antigo relógio mecânico, analógico, o paletó
e a gravata, praticamente, fora de moda. Aproximava-se a aposentadoria, mas o
casamento não viera. Armênio sempre fora um namorador contumaz. Mal saía de um
namoro e já metia-se em outro, as mulheres lhe proporcionam um conforto e
refúgio, que tinha como imprescindíveis. Por várias ocasiões, pensou
aproximar-se do matrimônio, mas não. Uma série de desencontros e oportunidades
perdidas condenaram-no aos amores fugazes, passageiros. Desejos perdidos, cumplicidades despedaçadas, enganos, desenganos, infidelidades, ciúmes e incompatibilidades de toda ordem, condenaram
Armênio a uma vida solitária. Mas o sonho do casamento sempre o perseguia e
inquietava, proporcionando-lhe doses de mal estar, sensação de vazio e a dor da
incompletude. Nesta primavera, resolvera, decididamente, fazer diferente.
Sentou-se na frente do computador, e aproveitando-se da oportunidade de receber
uma indenização que já aguardava há alguns anos, decidiu que iria, agora sim,
se casar, não com uma das que tivera a chance de conhecer, de carne e osso, mas com uma boneca, de plástico e borracha, que o
mercado agora oferecia, com qualidades e versatilidades que só mesmo a
indústria é capaz de ofertar. Havia se cansado, em definitivo, de tentar
compreender ou fazer-se compreendido. Sentira que o território do amor e do
prazer era também o território da disputa e desavenças. Tornaram-se difíceis
amarrarem em nós as relações que nunca passaram de breves, mesmo que largos
laços. Armênio atirara a toalha. O dinheiro que recebera lhe permitiria
adquirir uma das melhores e mais aparelhadas, com direito a uma textura
semi-humana, vagina vibratória e gemido eletrônico. Não era pouca coisa. A
versatilidade do material, apesar de inflável, possibilitava as mais variadas
posições e uma película térmica lhe induzia o calor. Fechado o negócio, seria
enfim, a hora de tirar do armário as velhas aquisições e o paletó e a gravata
poderiam cumprir suas históricas e postergadas funções. O relógio seria o testemunho
maior do tempo que se aguardou e do atraso que ora, se interrompia. Aquela
seria uma ocasião especial. Naturalmente, por razões que são óbvias, não
haveria convidados para a cerimônia, mas afora este detalhe, Armênio organizou
um casamento completo. Providenciou doces e salgados, encheu a casa de flores,
fitas e guirlandas. Perfumou os móveis e o apartamento inteiro transformou-se
em um grande altar. Ele não se esquecera de comprar um vestido de noiva, ornado
de rendas e rosas. Comprou champagnes, vinhos e taças. Enfim, a união iria se
consumar. Armênio, retirou o embrulho de plástico que encobria sua
esposa-mercadoria, retirou-lhe as fitas e perfumou-a inteira. Selecionou e
programou o aparelho de som para tocar as músicas mais românticas que encontrara
e tomou duas garrafas inteiras do seu vinho preferido. Os olhos de Armênio
foguejavam. Levou a recém-esposa para o quarto. A lâmpada regulada à meia-luz.
Despida a cônjuge, deita-se sobre ela, onde afoga todo o seu voluptuoso amor.
Ama-a com toda intensidade que corpo e alma lhe permitiam e, com todos os pelos
e poros em arrepios, sente que forças cósmicas o levam ao céu. Armênio entra em
erupção, num explosivo surto de prazer. Olha bem dentro dos olhos de vidro de
sua esposa de plástico. Uma descarga elétrica rasga seu peito. Levanta-se e
abre a janela. Ao deitar-se de novo, abraça-a tão afoitamente, que a taça de
vinho, no encosto da cama, espatifa-se em cacos. Um caco fino e cortante
enfia-se na perna esquerda da boneca perfumada e ela, esvaziando-se num rasgo,
rodopia pela cama, dá um salto para o alto e atira-se pela janela do quarto.
Armênio senta-se no canto da cama. Não irá atrás dela e também não havia como
reclamar ao fabricante.
Marcos Vinícius.