terça-feira, 10 de junho de 2014

Amor de tempestade



A primeira vista não havia nada que fizesse com que se destacasse entre a multidão de transeuntes. Não era lá um homem daqueles que chamam a atenção pela beleza, porte físico, que fazem com que os olhares, principalmente os femininos, se enverguem quando passam por elas. Ao contrário, apesar de ser dono de traços, isoladamente, bonitos, no conjunto, considerando a somatória dos atributos, a impressão que se passava talvez fosse mais de feiura, do que fonte de admirações e desejos. Vestia-se bem e carregava um ar de despreocupação. O vento forte que varria a cidade, fazendo os homens levarem as mãos aos cabelos e as mulheres segurarem as barras das saias, arrancava dele, um sorriso descomprometido, um olhar de contemplação, e uma sensação de alegria, ao sentir-se refrescado por uma lufada de ar frio. Aproveita a revigorada que a ventania lhe proporciona e aperta os passos. Talvez, apressando-se, chegue ao destino ainda seco, antes que a chuva caia e alague a cidade. Assim que se aproxima do cruzamento, um raio luminoso corta o céu e este se escurece por completo. Um ruído estrondoso faz os cidadãos taparem os ouvidos e arregalarem os olhos. As nuvens cinza-escuro, num ballet ritmado, traçam uma coreografia misteriosa por sobre a cabeça dos homens. Os que olham para o alto, admiram-se. O vento passa a soprar mais furioso e num ímpeto, varre as calçadas e levanta o pó e o lixo, cegando os que passam e fazendo tossir os mais jovens e os velhos. O cheiro de poeira, o esvoaçar dos cabelos e uma friagem úmida eram o sinal que a tempestade não tardaria.


Correr não iria, pois não valeria o esforço, suas vestimentas não eram apropriadas, a calça era um pouco pesada e o sapato novo, ainda duro, fariam seus galopes extremamente desconfortáveis. Além do mais, o que tinha a fazer, não era coisa que se demandasse muita urgência, era mais vantagem atrasar-se, do que chegar ao destino completamente desarranjado e molhado da cabeça aos pés. As primeiras gotas de chuva, grossas e frias, despencavam furiosamente dos céus, encharcando as ruas, avenidas e as paredes dos edifícios em poucos segundos. Poucos poderiam prever que as águas cairiam tão rápido.  Praticamente sem alternativas, abriga-se sob uma ampla marquise, já tomada pelos corpos que procuravam proteger-se do aguaceiro e da friagem. Acomoda-se sobre um degrau no canto da entrada de um grande edifício. Ali estaria protegido e poderia assistir, com visão privilegiada, a chuva densa que a tudo alagava, e aos murmúrios e resmungos dos que, praticamente à força das águas, tinham seus apressados passos interrompidos. Deixava-se entregue então, na falta do que fazer, aos devaneios e pensamentos. Observa todos ao redor, um a um, a fisionomia enrugada dos velhos, o rosto assustado das crianças diante dos estrondos dos trovões, a maquiagem borrada das raparigas, e as roupas ensopadas dos que chegavam por último. De sua parte, os sinais de gotas encharcadas sobre os ombros, mostrava que não se salvara por completo.


A interrupção do fluxo da cidade, a paralisia da multidão, que não arriscava desafiar a tempestade, as aglomerações sob as marquises e a enxurrada que lavava o asfalto criavam um cenário a dar uma perspectiva diferente da condição humana. E era nisto que pensava. Por minutos, observava a multidão, gentes de todas as idades, de todos os tipos, credos, religiões, tendências políticas, estavam ali, paradas, esperando, ansiosas, resignadas, sob um temporal, que ameaçava engolir a cidade.  Às vezes, as pessoas olhavam-se, desconfiadas, umas para as outras, afinal, estavam próximas demais, noutras, trocavam olhares solidários, cúmplices, eram vítimas da mesma imprevisibilidade. Se o mundo resolvesse, de uma vez, tragar a todos, engolir a humanidade, teriam todos o mesmo destino. E uma vez chegado o momento, pode até ser, que no instante final, dessem as mãos, trocassem palavras derradeiras, mas isto, não saberemos.


Certo é que já se espremiam por ali há um bom tempo, o temporal não dava sinais de que tão cedo, poderia cessar, e aos poucos, na falta de alternativas, enquanto uns mexiam e remexiam os papéis que tiravam do bolso, os liam uma vez, outra, ou apertavam freneticamente os seus aparelhos celulares, havia os que contemplavam desolados a paisagem, fitavam os céus, para ver se de lá arrancavam alguma mensagem ou entreolhavam-se para certificarem-se mais uma vez, através da observação atenta, de cada fisionomia, que os homens, de fato, não se repetem. Nada como estarmos em meio a uma multidão para percebermos quanta diferença há entre nossas semelhanças. Apesar de sermos todos, uma única espécie, ponha-nos juntos, lado a lado, aos milhares, milhões, para percebermos a infinidade de diferenças que há entre nós. É bastante criativa a mão invisível que modela cada um de nossos gestos, olhares, ângulo facial, largura e intensidade dos sorrisos, uma pequena ruga aqui, outra ali, o peso dos ossos, a força dos braços, a habilidade das mãos, o timbre da voz, tornando-nos únicos, peculiares e originais, entre nossos supostos semelhantes.


Olha para o relógio. Estava realmente atrasado, mas era bobagem desesperar-se. Seria impossível atravessar o aguaceiro. Ademais, o atraso era plenamente justificável, uma vez que, certamente, a cidade inteira estaria sob as águas. Resolvera então, não ter pressa, e estava observando um letreiro que piscava à sua frente, quando sente paralisar-se, algo o impedia de realizar qualquer movimento, sentia ser observado, fincava os pés ao chão, e não via ainda, quem, insistentemente, olhava para ele. Ainda não criara forças suficientes para voltar-se para quem o admirava. Uma timidez mórbida o impedia que encarasse a situação de frente. Raspa a garganta, enfia a mão nos bolsos, volta a conferir o relógio, passa os dedos sobre os ombros molhados e por fim, move os pés, ajeitando uma posição mais confortável, quebrando aos poucos, a rigidez dos músculos e dos ossos. Uma névoa imaginária que pousa em seus olhos, uma comichão no braço esquerdo eram o sinal de que continuava sendo contemplado. Quem estaria a encará-lo? Uma coisa tinha certeza. Era uma jovem mulher. Mas como? Não se lembrava de ocasião em que tivesse despertado atenções femininas de forma tão persistente. A bem da verdade, nunca foi de muita sorte com a mulheres, e as que passaram por sua vida, foram fruto de muita conversa e jogos de sedução, que na maioria das vezes, sempre levavam algum tempo. Nada de paixões repentinas, amores à primeira vista, maiores intimidades no primeiro encontro, entregas inesperadas. Suas conquistas, e não haviam sido muitas, eram resultado de estratégias, organização e planejamento, ou coisas arranjadas.


Respira profundamente, enche os pulmões de oxigênio, inala a umidade do ar, estufa o peito, mantem os olhos firmes e vira-se, lentamente, para o lado. Finalmente fixa os olhos que  procuravam os seus. Dois olhos negros, grandes e admirados, parecem vasculhá-lo por dentro. Mantem-se inerte. A mulher contempla-o fixamente. Era jovem e bonita, muito bonita, talvez umas das mais belas que havia visto por aí. Ele a observa em cada detalhe, completamente, e sente o corpo inteiro arrepiar-se. A mulher não tirava os olhos dele. Ele sentia o peito apertar, o coração batia forte. Uma gota d’água fria descola-se da marquise e cai sobre os ombros descobertos da jovem. Ela seca a água que já escorria com os dedos, cruza os braços trêmulos e solta um quase silencioso gemido, sem tirar os olhos dele. Ele cora. A jovem parecia-lhe cada vez mais bela, e começa a imaginar se não teria sido ela a povoar seus sonhos em alguma ocasião da vida, ou se não estaria sonhando ali, agora, quem sabe peripécias do destino, no qual apesar de não acreditar muito, talvez pudessem estar atravessando o seu caminho. Nunca havia confiado muito na sorte. Quem sabe a recompensa por acreditar-se um sujeito de bem. Talvez fosse oportunidade única. Sente-se um pouco inseguro e sem jeito. A mulher olha como quem espera. A chuva reduz a intensidade, começa a abrandar-se, um feixe luminoso abre-se por sobre os edifícios e o asfalto põe-se a brilhar. O tempo começa a abrir-se e um sorriso cúmplice se esboça na face iluminada da mulher.


Não havia tempo a perder. Daqui a pouco, a chuva pararia e não mais haveria motivos para que permanecessem ali. A forma como o fitava, não deixava dúvidas, não eram apenas olhos de curiosidade, ou de quem está a reconhecer um amigo antigo que não vê há anos. Sua fisionomia, e para percebê-lo, não há que ser um especialista, era de desejo e sedução. Não entendia bem que qualidade sua poderia despertar tanto o interesse e a atenção da mulher. Toma algum fôlego em segundos, ajeita um pouco a camisa, procura descontrair-se, ensaia um passo em sua direção e tenta já deixar articuladas, guardadas em algum canto da boca, as primeiras palavras que deveria dirigir-lhe. Ela não desvia os olhos dele. A chuva torna-se a cada instante, mais fina e rala. Ele caminha em sua direção. Por um instante, tem a sensação que as palavras vão lhe trair, dizer o que não deve ser dito, soltarem-se engasgadas ou trancarem-se no peito. Segue adiante. Quando chega bem próximo, um ligeiro tremor corre por suas pernas, como se estas, quisessem fugir de sua missão, ou ao contrário, correr em sua direção, mas certo é, que de certa forma, alteraram o ritmo dos passos. Abrindo caminho entre os que ainda se amontoavam sob a marquise, vai lentamente, aproximando-se dela. A cada passo, impressionava-se mais com a beleza da mulher. Por um segundo, pensa em desistir, deve ser algum engano, pensou. Não houve em sua vida outra ocasião em que mulher tão bela e atraente estive a observá-lo dessa maneira, em um encontro repentino e casual. Posta-se diante dela. De alguma maneira, saem raios dos olhos dos dois. Ele, meio sem jeito e quase aos atropelos, diz a ela, que adoraria conhecê-la. Ela diz que gostaria muito de conhecê-lo também, que não sabia ainda exatamente o porquê, mas que ele havia despertado nela algo de bom. A tempestade que terminava, parecia ter se transferido para dentro dele. Um trovão ensurdecedor estoura em seus peitos e aquece seu corpo inteiro, que vibra. O sangue, circulando mais veloz, deixa seu rosto e o pescoço vermelhos, e um raio de luz desponta em seus olhos admirados. A voz da mulher era excessivamente doce, suave e feminina. Os timbres de sua resposta, a cadência de suas palavras, como o vinho e o mel, deram-lhe uma sensação de encantamento ou embriaguez, da qual mal conseguia disfarçar. Mais uma vez, imaginou que esta pudesse ser a mulher que já povoara seus sonhos. Agora que ouvira sua voz, intérprete de almas, espíritos e intenções, não tinha mais dúvidas. A chuva parou. A mulher diz não poder demorar, pois, uma vez que a chuva havia cessado, deveria tentar recuperar o tempo perdido, já estava atrasada em seus afazeres. Passou o número de seu telefone, que ele rapidamente anotou em seu aparelho celular, e insistiu que ligasse. Ele põe a mão em seu cabelo e ela beija-lhe o rosto, dando-lhe um gracioso sorriso de despedida, que faz com ele, perdesse por completo, o rumo dos passos. Por pouco, não mais se recordava em que direção deveria prosseguir. Um torpor inusitado havia lhe arrebatado os sentidos.


O encontro havia sido breve, mas avassalador. Depois que ela vira de costas, deixando um rastro de perfume no ar, uma inebriante fragrância entra pelas suas narinas, ele a respira profundamente. O mundo parece revolver-se dentro de si. Pouco a pouco retoma os passos em direção ao seu destino, em uma lenta caminhada automatizada, uma trajetória programada, da qual parece ter perdido a noção ou a necessidade. A imagem da mulher continua a persegui-lo, mesmo que siga em frente, sem mais olhar para trás, ela está ali, presente, em cada rosto que surge do nada, em cada esquina ou automóvel, em cada nova multidão que se aproxima, seja nas portas dos shoppings, nas calçadas dos templos ou nos pontos de ônibus. Não consegue perdê-la de vista. Imagina porque não aproveitou melhor a oportunidade do encontro, talvez se insistisse que se demorassem um pouco mais, se tivesse feito perguntas mais apropriadas para a ocasião, ou fosse mais ousado. Talvez não, seja lá como for, ela parecia estar mesmo um pouco apressada, levava umas pastas nas mãos e tinha horários, mas o melhor, havia se interessado por ele. Que horas ligaria? Mais conveniente talvez fosse esperar a noite chegar, quando provavelmente já terá se livrado de seus afazeres e obrigações. Mas uma ansiedade crônica tomava conta de si. Havia horas ainda pela frente. Não via o momento de ouvir novamente aquela voz adocicada. Pouco dialogara com ela, mas sua presença, a forma como o olhava, os gestos suaves, o sorriso aberto, haviam lhe conquistado, definitivamente.


Mil imagens e pensamentos vinham-lhe à mente. Seria esta a mulher, que talvez, os céus haviam reservado para ele? Sempre acreditou, que dado o tamanho da humanidade, muitos certamente morrerão sem conhecer aquela parceira que provavelmente lhe caberia bem. Não que acreditasse na existência de almas gêmeas ou caras-metades, mas que dado o tamanho do mundo, impossível que não houvesse alguém, mesmo que lá pelos seus cantões mais distantes ou inacessíveis, a quem pudesse amar. Mas neste aspecto, não era lá muito otimista, e chegava a imaginar que em seu caso, fosse mais difícil que encontrar uma agulha no palheiro. Por outro lado sabia também, que as coisas não estavam de todo, perdidas. Quem sabe a sorte tenha vindo bater-lhe a porta? Apesar do pessimismo, nunca foi totalmente descrente. Acreditava que as possibilidades da vida, mesmo que muito remotas, eram sempre possibilidades, e que enquanto ainda estamos vivos, sempre pode haver alguma forma de redenção. Uma chuva fina volta a cair. Estranha sensação, mas a água, da qual não procura mais se esquivar, tem a fragrância da mulher. Ele então aperta os passos, levanta a cabeça em direção à chuva, como se quisesse tragá-la e deixa-se encharcar. Quase sem perceber, levanta os braços para o alto. Gesto pouco esperado entre os transeuntes, dado seu relativo ineditismo, muitos olham para ele. Ele vê a mulher em cada um dos rostos, todos são ela, e estão a admirá-lo. Não se faz de rogado. Prossegue com os passos firmes, daqui a pouco chegará a seu destino.


Já ofegante, depois de muito caminhar, estimulado pelo frenesi que o encontro lhe proporcionara, resolve parar sobre a ponte, que ligava as duas porções da cidade, e observar a violência das águas do rio, que corria bem sob seus pés. Impressionante como havia se enchido rapidamente, as águas revoltosas e barulhentas, estavam prestes a transbordar. As ruas laterais alagavam-se. A força das águas chicoteavam as bases e os pilares da ponte, que trepidava. Era possível sentir o roncar das águas e o tremor das estruturas de metal e concreto. Ele, já molhado por inteiro, observa tudo, atentamente, mas tremia, como que tomado de febre. Tremia muito, tremia todo. Por um minuto chegou a pensar, se era ele quem tremia com a ponte, ou se era a ponte quem tremia com ele. Sacolejando-se sobre o asfalto molhado e apoiado no parapeito da estrutura, solta um largo sorriso de felicidade. A sorte, quase inesperada, havia atravessado seu caminho. Agora sabia. Estava irremediavelmente apaixonado e a sombra da mulher estava em todos os lugares. Para certificar-se mais uma vez da sorte grande, enfia a mão no bolso, retira de lá o aparelho celular. Estava ali gravado o número para o qual mais tarde ligaria, e a depender das suas expectativas, talvez pudesse dar algum outro sentido à sua existência. Queria ver o número mais uma vez, o tesouro guardado. Com a mão ainda trêmula, leva o dedo à tela do aparelho para acionar seus comandos, mas por um pequeno descuido, imprime sobre o teclado uma força maior que a necessária para acioná-lo, e ao invés de ligá-lo, acaba por empurrá-lo para o fundo das águas. O aparelho estava perdido, e suas ilusões também. Havia sido apenas um amor de tempestade.



Marcos Vinícius.