sábado, 11 de agosto de 2012

À deriva



À deriva



Deus, sentindo-se indisposto e cansado, e desconfiado, que talvez possa lhe escapar a imortalidade, que muito provavelmente, não passara de ilusão, resolve fazer uma criatura nova, que pudesse, quem sabe um dia, substituir-lhe na missão de gerir o mundo tão zelosamente criado por ele. Preocupa-se em imaginar que sua criação possa ficar um dia à deriva, a deus dará, sem que um comandante à sua altura, estivesse incumbido de traçar rotas e destinos.  Sempre alegrara-se em criar espécimes de todos os tipos, vegetais, animais, rochas e minérios das mais variadas formas, cores e nomes. Depois de um tempo infinito de criações, sua habilidade em gerar vidas era incontestável. Povoou o mundo com uma diversidade incrível que fascina mesmo o mortal mais desatento. Entre as plantas, reuniu nelas todas as cores que conseguiu misturar, desde aquelas que já carregam nomes, até aquelas tonalidades que ainda não foram possíveis serem nomeadas, pois as palavras parecem não abarcar todos os tons que existem no mundo. Flores e plantas para todos os ambientes, desde os territórios mais úmidos até os mais áridos e inóspitos. Até as grandes formações rochosas, onde parece não haver um naco de terra sequer, arbustos exuberantes e flores exóticas desenvolvem-se por milagres. Quanto aos animais, tanto não poupou esforços, e ao longo de sua longa existência criou de todos os tipos, extinguindo alguns, por não se adequarem mais às condições ambientais, aperfeiçoou outros, e todos veem-se metarfoseando, em um jogo de erros e acertos, até que organismos mais eficazes e amigáveis possam se interagir mais eficazmente com a natureza circundante, em um novo habitat.  Animais voadores, aquáticos, terrestres, microscópicos, que vivem nas profundas galerias nos subsolos. Assim levou sua existência, por milênios e milênios a fio, como fiador, artesão da vida.


Mas agora via sua saúde abalar-se, já não tinha mais aquele vigor da juventude, quando em ímpetos criativos, criou tudo que há. Tinha uma sensação de cansaço, a respiração tornara-se ofegante, e a memória, muitas das vezes, vem a faltar-lhe comprometendo seus grandes projetos e pensamentos. O tempo é fatalidade até para os que se imaginam imortais. Se não é a vida que está a esvair-se, no mínimo, é o momento de aposentar-se, pois uma indisposição sintomática e crônica, diz que é hora de deixar a outro o comando do mundo, da sua complexa criação. Era um pai responsável com sua criatura e não pretendia deixa-la à própria sorte. Como faria um sucessor? A princípio, imaginou criar alguém a sua imagem e semelhança, mas por fim, concluiu que isto talvez pudesse lhe trazer mais dores de cabeça do que soluções, e além do mais, um breve instinto de vaidade lembrou-lhe, que a partir de então, não seria mais o único. Como durante sua  vida inteira havia se dedicado à concepção de um mundo perfeito, onde as mais variadas formas e espécies se intercruzam em um fabuloso ecossistema, tudo funcionamento na mais perfeita ordem e harmonia, numa sucessão de paraísos, haveria desta vez, quem sabe, em seus dias finais, conceber quem pudesse substituí-lo, para que sua grande obra de arte, se não pudesse atingir a eternidade, como ele mesmo sabia hoje não ser imortal, pelo menos que pudesse prolongar-se por  um tempo maior.


Uma dor insuportável faz dobrar-lhe as costas. Uma tosse seca e persistente, quase lhe tira o fôlego e um clarão rompe em seus olhos. Sente-se tonto, recosta-se em um canto do firmamento, e põe-se a riscar os dedos entre as nuvens.  Sentindo-se fraco e prevendo não ter mais saúde para a difícil missão que lhe cabia, uma ideia súbita lhe vem à mente. Imediatamente, levanta-se, põe-se a andar em círculo, e observa, do alto, bem alto, o mundo abaixo a girar. Mas como ainda não havia pensado nisto? Pensa. E os céus, como se soubessem do seu pensamento, irrompem em trovões, que apenas se calam, quando Ele levanta a mão gigante, exigindo silêncio. Uma suave luz azul ilumina sua face, que sorri confortavelmente, como se parte considerável de seus problemas tivesse sido solucionada. Sim, era isto. Uma criação nova, coisa que o mundo ainda não conhecera, que não constava de seus experimentos, um ser dotado de um cérebro bastante sofisticado, capaz de produzir idéias, pensamentos, ciência, conhecimento, e de racionalizar. Um cérebro que ao longo dos anos, tornar-se-ia tão sábio e inteligente, que dotaria o mundo de um avançado sistema de auto-gestão, onde na ausência do Pai, a vida seria independente, autônoma e a liberdade plena.


Abriu seus arquivos, mexeu, remexeu, espalhou projetos, fez anotações. Não haveria como não dar certo. O que havia criado que até hoje não funcionara perfeitamente? Vez ou outra, em função de alterações climáticas, ambientais, uma espécie ou outra desaparece, dando lugar a alguma outra nova, daí as forças se recompõem, e a vida adquire nova ordem e equilíbrio. Faz cálculos complicados, rabisca daqui, dali, revira fórmulas antigas, acrescenta elementos novos, apanha receituários, altera códigos, manipula frascos e substâncias, produz cores e fumaça. Finalmente, tinha diante de si um produto novo, o projeto de um cérebro como nunca havia feito. Sabemos como são inteligentes os mamíferos, os primatas, mas nada que se iguale a um cérebro capaz de produzir linguagens, história, conhecer, às vezes, de perto, segredos da engenharia do Pai, talhado para as artes e para a filosofia. Pronto, o mundo estaria pronto, a criatura estaria preparada para sua maioridade, poderia sobreviver ao criador. Angustiara-se por não ter pensado nisto antes, e que apenas o adoecimento e a proximidade da morte, teriam lhe despertado tão grande ideia, que agora o livrava de preocupações, pois a criatura livre cuidaria ela mesma de si.


O projeto ficara pronto, tudo já estava traçado, rascunhado. Faltava agora colocar a divina ideia em prática, executar o sofisticado plano, uma vez que havia concluído o esboço. Como era uma invenção completamente nova, pretende construí-la com material mais resistente, pois assim teria o cérebro mais tempo para melhor  conhecer toda a complexidade do mundo e sua história. Seu potencial deveria desenvolver-se aos poucos, gradativamente, anos após ano, como os bons vinhos. Só o tempo e as experiências iriam trazer todo o conhecimento e sabedoria necessárias para a execução de sua missão. Se imortal não fosse, pelo menos que durasse muito para dar conta de tantos mistérios e tanta diversidade que é a sua obra. Imaginou uma matéria prima que pudesse sobreviver aos séculos, longeva, para que as decisões que viesse a tomar no futuro, possam ser fruto de um pensamento elaborado, um conhecimento acumulado, digamos, uma razão constituída. Coisa que não se adquire de uma hoa para outra, por mais sofisticado que seja o sistema cerebral, com suas ramificações, seus circuitos neurais e químicas, é necessário dar-lhe tempo, para atingir uma maturação mínima.


Revira seus pertences, abre e fecha portas e gavetas, procura em suas exageradas prateleiras de grande artificie, uma matéria prima que estivesse à altura da nova criação. Algo como kriptonita, uma substância especial, que pudesse dar ao novo invento, um aspecto de superioridade. Não podia ser matéria fraca que viesse a se quebrar, diante da primeira adversidade, ou antes, tornar-se débil e senil, quando  suas estruturas, firmavam-se evoluídas e avançadas. Não poderia utilizar os mesmos elementos com o qual constituíra todas as espécies e feitos anteriores, teria de encontrar algo bem apropriado. Neste dia não tivera descanso, antes de dar forma à coisa, queria definir muito bem seus detalhes, todas as implicações e regras de funcionamento, afinal, desta vez, o trabalho tinha uma característica diferente, pois representava a possibilidade da sobrevivência de sua obra, quando aqui não mais estivesse. Apesar de sentir-se cansado, sente-se também orgulhoso, pois apesar das dores e tonteiras, ainda é capaz de ideias brilhantes. Não há quem acumule tantos poderes e consiga isentar-se de alguma vaidade. Mira-se no espelho das águas. As rugas do tempo, ainda não lhe subtraíram de todo a beleza, os olhos dão sinal de esgotamento, mas exprimem grandeza e compaixão. O tempo não poupou nem a ele próprio, e agora percebe que a obsessão pela imortalidade era mais uma doce ilusão da juventude, não há poder ou império que tenha sobrevivido à sua mortal e destruidora ação.


Sente uma súbita sensação de esgotamento, como se repentinamente, suas forças e poderes fossem lhe faltar. A tosse seca, mais vez, vem para quase estourar os pulmões. Os braços são tomados de um forte formigamento e as pernas estão trêmulas. A sensação de mal estar parece incontrolável. Estica o corpo para o alto, e joga seu cabelo ao vento. O ar frio das galáxias proporciona-lhe uma breve sensação de conforto, mas era por pouco tempo. Em instantes, é tomado por uma ansiedade que lhe causa  náuseas e vertigens. Estica outra vez o corpo, enche o pulmão com os ares do infinito, estica braços e pernas, e sentindo um pouco de alívio resolve então, retomar ao trabalho. Sabe-se lá que mal é este. O melhor mesmo é concluir logo sua obra, pois não sabe ainda quanto tempo terá. Vai até sua grande oficina, ali estão reunidos todo o instrumental que na maioria das vezes utilizou para seus trabalhos, projetos de espécies, ferramentas, medidores, calendários, relógios, réguas, pincéis, vasilhames, bisturis, tubos de ensaio, e toda a parafernália que faça jus ao ofício de um grande criador. Uma infinidade de portas, números, gavetas, armários, carrega ali o testemunho de tudo que já existiu. Ele anda apressado de um lado para o outro, ainda que sofra um pouco com a falta de ar, e as pernas não tenham recuperado a firmeza. Quanto mais lhe esgota a força física, mais pressa tem em ver concretizada sua última boa ideia. Vai de uma mesa a outra, mistura, amassa daqui, ajeita dali, estica, contorce, faz ligações, enxuga a testa, dobra, desdobra e modela. Ao levantar os braços para apanhar os ingredientes, a substância primordial, nas prateleiras superiores, uma ligeira tonteira embaça seus  olhos e lhe prejudica a visão. Mesmo às escuras, tateia as maçanetas, as frestas dos escaninhos, abre uma gaveta e retira de lá, a matéria que dará vida à criatura dotada de um cérebro exageradamente capaz. Sem enxergar direito, com a visão turva e sombreada, apanha a substância que faltava para dar corpo ao projeto. Faz os encaixes devidos, nisto era mestre, e não havia cegueira que o impedisse de executar estes ajustes finais, com o que já estava acostumado há quase uma eternidade. Mexe, mistura e apara. Em instantes, com a experiência de quem domina a matéria e a vida, a obra fica pronta, e com um sopro vivificante e criador, lança uma novidade ao mundo. Aos poucos, vai recuperando a visão, e vai  admirando-se e encantando-se com a beleza e perfeição que acabara de colocar a perambular pela terra. Era o que faltava. Agora poderia ausentar-se tranquilo, não seria o destino do mais azul de seus planetas, que iria trazer-lhe mais dores de cabeça. Estava em boas mãos. Era uma espécie bípede dotada de um cérebro dos mais sofisticados e ramificados que a natureza conheceu. O criador respira tranquilo e vira-se para trás para fechar as gavetas e armários que deixara abertos, e pasmo, constata que confundiu-se ao misturar os elementos. A obra não saiu como a encomenda. Fizera a criatura, como fizera a maioria das espécies animais, de carne e osso. Sim, o cérebro tinha um potencial fabuloso, mas era carne, matéria prima que não sobreviveria o tempo necessário, para que adquirisse ao menos juízo. Deus tenta reunir todas as suas forças para refazer o mal feito, enche o peito, enrije a musculatura, roga a seus ancestrais, mas os últimos poderes que tinha, havia consumido na última criação, era tarde. Um desânimo mortal invade seu corpo, agacha-se, e por fim, deita-se no rastro do lúmen das estrelas. Estava inconsolável e febril. De longe, sem mais poder tocá-la e com o caleidoscópio do tempo em punho, vê sua obra inteira sendo consumida por um cérebro que projetado para substituir a si, não encontrou sequer condições para superar sua fase mais primitiva e selvagem. E perdeu-se em vaidades.



FIM



Marcos Vinícius.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Coincidências e paranoias



Há alguns dias assisti pelo Youtube um discurso de Hugo Chávez, onde ele falava sobre as tenebrosas coincidências em que vários mandatários sul-americanos, com história política associada a movimentos populares ou partidos à esquerda, haviam sido vitimados por um verdadeiro boom de tumores  cancerígenos de todos os tipos, em anos recentes. Cita os casos do presidente deposto Fernando Lugo, o de Dilma, o dele próprio, o de Lula e o de Cristina Kirchner. Interessante que há um tempo eu já havia observado  a coincidência e me intrigado com a calamitosa situação, principalmente após um ler um artigo, não me recordo exatamente onde, que fazia referência a um provável câncer em Rafael Correa, do Equador, o que nunca mais ouvi falar, não sei se foi fato ou apenas boato. Pode parecer bobagem, paranoia, mas, no mínimo, é necessário prestar atenção. Eua e Israel desenvolveram uma ciência da espionagem, de golpes e violências, a qual nossa imaginação de simples mortais não tem como dimensionar. Haja vista o vírus Stuxnet, que em 2010 atacou instalações nucleares iranianas, que poderia, em última instância, causar danos catastróficos. Sabemos que nas últimas grandes incursões israelenses na Faixa de Gaza, o governo sionista, fez largo uso do fósforo branco, como os americanos, que com a guerra química no Iraque à época de Bush pai, fizeram inúmeras vítimas de câncer em um breve período de dez anos. Recordo-me que a morte rápida de Yasser Arafat em 2004, mal explicada e aparentemente silenciada, como se de morte natural se tratasse, me causou muito estranhamento, havia algo não revelado ali. Paranoia? Parece que não. Acabo de surpreender-me com o jornal de hoje, finalmente foram encontrados “uma quantidade anormal de polônio” em seus objetos pessoais, uma substância radioativa extremamente tóxica que em 2006 foi utilizada para envenenar em Londres um ex-espião russo convertido em opositor ao presidente Vladimir Putin. Bem, seja lá como for, de uma coisa já sabemos,  o conhecimento científico, de maneira geral, nos últimos tempos,  tem sido colocado não à serviço do bem comum ou da humanidade, mas do grande capital e de interesses escusos. Nestas circunstâncias, coisas muitos boas não se pode esperar. Às vezes, parece não haver alternativa à paranoia.



Marcos Vinícius.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

O supermercado







Antes de sair para o trabalho, fazia questão de deixar a mais perfeita ordem em casa. Deixava o alimento pronto para as crianças, suas toalhas dobradas e cheirosas, os pratos e talheres limpíssimos a brilhar e prontos para o uso dos meninos. A moradia era pequena, precária, mas extremamente organizada, não deixava nada fora do lugar, as revistas sempre empilhadas, umas sobre as outras por sobre o armário, alinhadíssimas, sem uma ponta qualquer que pudesse quebrar a harmonia do conjunto. Sempre fora muito caprichosa com as coisas da casa. Mesmo os utensílios ou equipamentos mais antigos que possuía, tinham aspecto de novos, pois eram sempre espanados, limpos em cada canto, com panos secos e úmidos, e não havia dia em que um cisco qualquer, um poeirinha perdida tivesse sido encontrada. Assim sempre havia levado sua vida, desde que se entendia por gente, como gostava de dizer. Não havia em sua memória ocasião em que sua conduta fosse diferente. Saía de casa em direção ao trabalho, invariavelmente no mesmo horário, dificilmente atrasava-se ou adiantava-se em um minuto que fosse. Cada passo, cada gesto, muitas das vezes repetia os mesmos que haviam sido ontem, e que certamente, também o serão amanhã, e entre vários outros do passado e do porvir, sempre dentro das mesmas frações de segundo. O mundo do trabalho e sua condição materna havia criado naquele espírito uma regularidade mecânica, cronométrica, disciplinada. Habituara-se aquela vida. Uma dor, porém, sempre lhe afligia, antes de ter que deixar seu barraco. As duas crianças, ainda bem jovens, com cerca de uma década apenas de existência cada uma, deveriam ficar sozinhas, até que a tia vizinha pudesse apanhá-las um pouco mais tarde e levá-las para a casa da avó. Assim ocorria todos os dias. Depois de chegarem da escola, a mãe servia o jantar, um prato com um bom bocado de arroz com feijão, duas ou três rodelas de tomate, batatas cozidas, e um ovo frito, ou pedaço de carne.  Feita a refeição, chegava a hora de dirigir-se ao trabalho. Mesmo contando com as graças e a ajuda da família a quem confiava os filhos, uma angústia lhe apertava o peito, o coração e o estômago doíam-lhe quando dava a última volta da chave na fechadura da porta e deixava sua prole para trás. Mas quanto a isso, não havia o que fazer. Sem aquele trabalho não teria como garantir sua modesta sobrevivência, nem a dos filhos, e nem teria como retribuir e remunerar o apoio que lhe era assegurado pela pobre família. Assim era e assim haveria de ser, Deus assim o queria.

Antes de chegar na avenida embaixo, onde pegava seu ônibus, atravessava umas poucas ruas e vielas, onde era bem conhecida, acenava para um, para outro, sempre com um sorriso discreto nos lábios, espalhava umas boas noites, um até mais ver, felicitações e simpatias, a cumprimentar aquela comunidade que sempre fora tão próxima. Mas não era lá de muitas intimidades, sempre fora mais discreta, retraída, e mesmo os acenos, apesar de sinceros, eram relativamente contidos.  No fundo, era uma mulher mais reservada, e apesar de conhecer a maioria de sua antiga vizinhança não era lá de muita exposição e sempre temera que sua vida privada, seus problemas familiares ou domésticos se tornassem de domínio público. Pode-se dizer que era mais caseira, não gostava de envolver-se em fofocas, e nem gostava que os filhos ficassem soltos à rua. Nunca se envolvera em confusão, e tinha o respeito de todos que na vizinhança conhecia. Ao afastar-se, porém, daquele ambiente familiar e ingressar no ônibus que todos os dias a levava ao trabalho, sua expressão alterava-se. A rigor, não era de dar conversas a estranhos. Era polida e educada quando lhe faziam alguma pergunta, pediam informação, quando assentavam ao seu lado, mas definitivamente não era de render assunto. Naquele momento, seu cérebro organizava-se para mais uma noite de trabalho, uma ligeira ansiedade envolvia-lhe a alma, e não considerava que houvesse algo que lhe inspirasse alguma conversa fortuita, um bate-papo. Era o momento de concentrar-se para mais uma noite operária, pois afinal era de onde tirava o sustento, e sempre se preocupou em fazer muito bem feito o que tinha de ser feito. Seus olhos, na maioria das vezes, voltavam-se para o lado de fora, evitava os olhares dos colegas de viajem e observava sempre o que a visão não podia fixar, a imagem em movimento das ruas, do comércio e dos transeuntes. Quando o veículo parava, seja em algum sinal fechado, algum ponto, ou em função de algum engarrafamento ou problemas do trânsito, seus olhos percorriam aflitos por sobre a multidão, como se ali procurassem por alguém, ou como se quisessem ao mesmo tempo, em uma só olhadela, ver todos de uma vez, cada um em meio ao grande alvoroço de corpos. Distraía-se verificando como são diversos os homens, as mulheres, com suas roupas coloridas, cortes variados, penteados inigualáveis, e fisionomias que nunca se repetem. Admirava-se ao observar a grande diversidade de imagens e de personalidades que a humanidade apresentava. O ônibus faz uma curva fechada, sai de uma avenida e entra em outra. Ela levanta-se, puxa o longo cordão de plástico que corria o lotação de ponta a ponta, uma lâmpada vermelha acende-se bem diante ao motorista, e em segundos, este para no ponto, as portas se abrem bruscamente, e finalmente, chegava ao trabalho. Faltavam poucos minutos para as dez horas da noite, quando iniciava o seu turno.

Ao descer do lotação, bastava atravessar a larga avenida que se punha a seus pés, dar uns dez passos adiante, e em seguida, estaria bem diante das imensas portas daquele grande supermercado, no qual já trabalhava há alguns anos. Chegava no exato momento em que as portas se fechavam para o público, mas abria-se para ela. Ali, alguns poucos fregueses ainda estavam a encerrar as suas compras, fazendo seus pagamentos e ajeitando rapidamente algumas mercadorias em suas sacolas e caixas. Algumas luzes se apagavam pelos cantos das paredes, nos fundos dos corredores. Era uma forma velada dos funcionários anunciarem aos clientes que a noite agora chegara para eles. É uma comunicação silenciosa. Como nos bares, nos fins de noites, os proprietários e empregados aflitos pelo encerramento do expediente, começam a fechar mesas e cadeiras e empilhá-las em um canto qualquer, de preferência bem à vista, daqueles últimos beberrões, que estão sempre a pedir algo mais para beber. Normalmente, após estes sinais, os clientes são instintivamente tomados de uma pressa maior, e passam a guardar mais rapidamente suas mais recentes aquisições, apressam-se em enfiar as notas, trocos ou cartões pelos bolsos e correr em direção à saída. Rapidamente, aquele grande pátio de comprar estaria vazio. Um a um, os últimos fregueses colocavam-se para fora. O relógio de ponto apitava, no mesmo momento, em que ela postava-se de frente para ele. Tinha início, mais um turno de trabalho.

Não temos dúvidas que aquelas luzes que se apagavam quando dava dez horas, era mesmo para apressar os fregueses lentos, retardatários, que muitas das vezes, atrasavam um pouco a saída de muitos, isso via-se claramente nas fisionomias dos empregados, o desconforto e o incômodo, os olhares cruzados,  pois não viam a hora de verem-se livres do trabalho extenuante  que acabam de realizar naquele dia, afinal, se não podiam atrasar-se na chegada, era certo que não iriam querer atrasar-se também na hora de irem embora. As luzes principais, os grandes lustres que iluminavam aquele salão do consumo, penetravam todas as entranhas daquele grande estabelecimento, todas as mercadorias, prateleiras, gôndolas, equipamentos, balcões ficavam às claras. As câmeras de vídeo rastreavam todos os cantos, frestas, as pequenas sombras dos insetos noturnos, que quebravam o silêncio da madrugada. Os grandes olhos de vidro, o guardião onipotente que tudo vê, a vigilância eletrônica que guarda o universo das mercadorias, plásticos, utilitários, alimentos, matérias de limpeza, roupas, equipamentos, ferramentas, e tudo quanto os homens podem necessitar para atender suas demandas diárias. Mesmo à noite, com as portas fechadas, as luzes, praticamente todas, mantinham-se acessas. O grande galpão de produtos tornava-se uma imensa vitrine, que não se permitia deixar de mostrar aos cidadãos, que ele ali estava, pronto para atender tanto às reais necessidades, quanto aos mais supérfluos dos desejos. Era o templo contemporâneo, onipresente, onde todos em algum momento, teriam que recorrer. Quem ainda estava há algumas quadras de distância, já enxergavam de longe seu brilho, seu lume, como um farol, a proporcionar tranquilidade aos homens que navegam pelos grandes oceanos do consumo, contra os ventos e intempéries das políticas dos mercados. Quem trouxesse dinheiro ou algum cartão na carteira, não teria dificuldades na vida, pois Ele ali tudo podia oferecer, não se passaria fome ou sede, poderia se controlar o frio ou o calor, e quanto às opções de entretenimento, aquele supermercado era o melhor que poderiam encontrar pelas redondezas, seu departamento de eletrônicos, jogos e músicas, era bastante diversificado.

O senso de organização que possuía para lidar com as coisas de casa, nas atividades domésticas, também trazia para o trabalho. Era bem metódica, e começava sempre por ajeitar as prateleiras. Sua função ali era manter o grande salão limpo e organizado, para que os que ali viessem pela manhã encontrassem tudo pronto para o funcionamento, sejam empregados ou fregueses. Muitas das vezes, um sujeito coloca um produto qualquer em um carrinho, e depois de alguns instantes, desiste de levá-lo, e ao invés de deixá-lo no ponto que o tirou, deposita-o na primeira prateleira que vê à frente. Estas e outras tem que observar a dedicada funcionária que corre o olhos em todas as mercadorias, preenche lacunas, ajeita, afasta os que à beira da gôndola, estão prestes a despencar, ou o pote tombado lá no fundo do armário, que encontra-se praticamente invisível. Suas mãos cuidadosas aprumam todas as coisas, não há marca que se misture à outra, produtos similares que não estejam devidamente alinhados, mercadorias afins em setores distintos. Prima pela ordem e pela limpeza. Espana, passa panos, varre, retira a poeira dos cantos, dá polimentos aos planos e às arestas, deixa transparente os vidros, deixa mais claro o branco gelado dos frigoríficos, deixa mais nítidas as marcas das embalagens. Sua dedicação sempre lhe rende elogios, o que sempre a constrange um pouco, pois não é lá de muitas vaidades, o que faz é por mero e exclusivo sentimento de obrigação e não que goste de aparecer ou mostrar-se bajuladora, não aprendeu a fazer diferente.

Ao cruzar o corredor que dá acesso aos hortifrutigranjeiros, um vento frio atravessa seu corpo gelando-a dos pés à cabeça, fazendo-a estremecer. Naquela noite, não viera preparada para toda aquela friagem, e normalmente, como exercita-se muito realizando suas tarefas, dificilmente é de agasalhar-se, pois o corpo, mantém-se quase todo o tempo, bastante aquecido. O único momento em que talvez desacelere um pouco é no meio da noite, quando para alguns poucos minutos para fazer um lanche rápido com um pão já com a manteiga que sempre trazia de casa. Algumas vezes, trazia um pouco de café, principalmente nas noites frias, noutras, o pão seria ingerido apenas com água mesmo. Mas seja lá como for, era o único momento, em que deixava um pouco de lado os panos e as vassouras. Mas assim que ingeria o último bocado, metia-se ao trabalho novamente, pois temia que o ócio pudesse afetar seu coração, e que seus pensamentos distraíssem-lhe a atenção comprometendo o cumprimento da jornada e missão que tinha à frente. Levanta os olhos para ver se encontra por onde entrava aquela gélida corrente de ar e aproxima-se dos janelões da parte lateral do edifício. Ali provavelmente encontraria algumas frestas abertas. De fato, algumas pequenas janelas abertas na parede superior criavam a corrente que acabava por varrer vez ou outra os grandes corredores do supermercado. Ao subir o vão da parede para alcançar o dispositivo de metal que fechava as janelas avista uma pequena praça ao lado, onde um razoável número de desocupados, desempregados, pedintes, bêbados, estropiados, famintos e doentes se amontoavam. Alguns falavam e gesticulavam muito, uns eram ouvidos por muitos, outros por nenhum. Havia quem falasse sozinho. Outros mantinham-se calados, ouviam um orador, outros os ignoravam por completo. Um velho com uma perna infectada e inchada, provavelmente com muita dificuldade de locomoção parecia entregue ao destino, estava prostrado, não falava e também não ouvia as falações, tinha os olhos petrificados, as mãos encardidas, eram o sinal evidente de quem há muito não sabia o que era um bom banho. Alguns homens andavam inquietos de um lado ao outro da praça, depois se sentavam junto aos outros, levantavam-se, repetiam o percurso, e sentavam-se novamente. Havia um clima de tensão, que só foi quebrado quando um sujeito de calças puídas, com uma magra sacola de pães, onde à primeira vista, percebia-se que não mataria a fome de todos, aproxima-se do local. Neste momento, ninguém permanece mais em seus lugares, seus antigos postos. Levantam-se e vão em busca das fatias que talvez lhes destinassem. Era o momento da ceia, os homens juntavam-se ao que se encarregava de distribuir os bocados, e seus olhos fixavam-se atentamente nos pães que eram repartidos e nas mãos que os repartiam para certificarem-se que tratava-se de fato, de uma partilha justa. Uns que estavam mais atrás na estreita roda que se formava, equilibravam-se nas pontas dos pés para observar a distribuição, mas também para chamar a atenção dos outros e mostrar que também eram parte na disputa. Todos recebem o seu quinhão, que é devorado em poucos segundos. Duas crianças magras disputam, entre si, as migalhas de seus pães que haviam caído ao chão. Catavam os farelos maiores deitados sobre as pedras do chão da praça, e seus dedos, de unhas cumpridas, corriam as junções das pedras, os frisos, as aberturas, o declive no cimento, onde podiam juntar-se o pó do pão, que levados ao dedo molhado, cata daqui, cata dali, transformava-se em um pequena maçaroca que enfiavam afoitamente goela abaixo, como se de farta refeição se tratasse. Com um empurrão brusco, aciona o dispositivo da janela e esta trava-se de uma só vez, interrompendo a passagem da corrente que congelava o lugar. Antes de descer dos degraus, observava mais uma vez aquelas pobres almas, com suas noites mal dormidas e suas fomes não saciadas. Ali, do alto, tinha como observar também quase todo o estabelecimento, via as prateleiras por cima, e percebia bem o conjunto, as divisórias, as seções, as placas com as ofertas, os preços, anúncios, as tabelas, propagandas, em uma grande conjunção de símbolos, códigos, cores e sinais. Ela estava praticamente sozinha aquela noite, o outro funcionário de plantão, tinha demanda grande de trabalho no depósito dos fundos, e provavelmente só daria as caras, quando o dia raiasse, já na troca dos turnos. Um calafrio cortante percorre outra vez todo o seu corpo, seu peito estremece, os braços sacodem-se, e os dentes batem uns contra os outros, como nas poucas vezes, que precisou entrar nas câmaras frigoríficas. Olha para cima, mira novamente a janela, e não encontra mais por onde pudesse passar o vento.  Esfrega as mãos com força, levanta a gola da camisa, apruma todo o corpo após um programado arrepio e salta novamente ao chão.

Ao descer, sente-se tomada de uma grande inquietação, olha para um lado, para o outro, e praticamente não se lembra do que estava a fazer. Revira as lembranças, tenta voltar o pensamento, mas estes lhe falham, e permanece parada em meio ao corredor. Seus olhos voltam-se novamente para a janela, fixam-se nelas. Imediatamente, num ímpeto, pula sobre o grande degrau de onde poderia observar mais uma vez aquelas almas. Naquele instante, as crianças reviravam o saco de pão, que já nem farelos mais trazia em seu interior, e iam em busca de alguma lasca minúscula que talvez houvesse encravado em algum canto no fundo ou em alguma dobra do papel da embalagem já amassada. A busca é em vão, e as duas pequenas criaturas entreolham-se desconsoladas e cúmplices na escassez e na miséria. A funcionária segura firme a aba da janela, de onde consegue um bom equilíbrio para poder acomodar-se melhor. Dali observa atentamente aquela cena. Por alguns instantes, não consegue ver ou imaginar outra coisa. Quebra, como poucas vezes lhe ocorre, a rotina cotidiana do trabalho. A friagem novamente percorre seu corpo, e um calafrio brusco, faz-lhe sacudir ligeiramente as janelas. Assusta-se com o ruído que provoca e outra vez, prepara-se para descer. Antes, porém, põe-se a observar uma por uma aquelas gentes, seus olhos fazem uma varredura rápida e precisa daqueles seres, correm pelos olhos, pelas mãos, vestimentas e gestos, procura acompanhar cada movimento, cada trejeito daqueles não cidadãos. Observa que por trás de cada particularidade, cada individualidade, existe algo que aparentemente lhes é comum, as marcas da necessidade, os signos da desnutrição. As imagens da partilha do pão persistiam em seu pensamento, o momento em que os homens viam-se irmanados não pela fartura ou deleite, mas pelas privações e pela fome. Uma fome crônica, que acumulada há tantos tempos, parece ter se tornado insaciável, e, portanto, deixado cicatrizes eternas. As marcas das carências múltiplas manifestam-se não apenas pelas roupas surradas, pelos farrapos encardidos, nas barbas por fazer, mas estavam incrustadas nas peles ressecadas precocemente, nas rugas antecipadas, em um couro quase sem brilho. Muitos carregavam os olhos fundos, a tez franzida, e tinham as pernas finas. As crianças, pobres e pequenas, estavam longe das alegrias da infância. Os velhos, distantes do conforto, que a idade deveria demandar. Os jovens, entre uns e outros, completavam a genealogia da pobreza. Tenta voltar de imediato ao trabalho, mas uma força maior retém-lhe ali, não consegue desgrudar-se da janela e as pernas ferram-se ao chão. Volta novamente o olhar, refaz, no sentido inverso, todo o percurso que acabara de realizar, outra vez as crianças, dirige-lhes um olhar de compaixão, e aí finalmente, consegue despregar-se dali, e retornar aos seus afazeres.

Por alguns instantes, custa a lembrar-se da tarefa que iria realizar, mas assim que atravessa o primeiro corredor e vê novamente as prateleiras com sua infinidade de produtos, recorda-se que deveria organizar a seção de frutas, ajeitar as caixas, que muitas das vezes ficavam remexidas e fora do lugar, retirar as frutas que não mais se apresentassem boas para o consumo e as folhas apodrecidas, retirar uma fruta ou outra que estivesse afastada de seus pares, ou que tivesse sido colocada com outras frutas diferentes, seja pela preguiça dos adultos em devolver de onde tirou aquela que havia desistido de levar, ou pela traquinagem das crianças, que muitas das vezes, divertem-se com o mal feito, o que não significa que apenas às crianças devemos reportar a qualidade. Ao dar dois passos na seção, o aroma das frutas invade suas narinas, e ela respira fundo, como a tragar todo o odor que cada uma delas exalava. Era um cheiro doce, suave e amargo, um cheiro da terra e de suas entranhas, seus frutos. Deliciava-se. As frutas estavam bonitas, grandes e vistosas, cada espécie com suas formas e cores únicas. Encantava-se. Tinha a impressão de conhecer poucas coisas tão bonitas e procura aproveitar-se à vontade aquela sensação. Observa atentamente todo aquele colorido, enche os pulmões, e procura outra vez, captar todo aquele universo de aromas que aquela grande seção de frutas poderia proporcionar. Respira fundo. Mas, outra vez, tenta mover-se e não consegue, como acabara de ocorrer agora a pouco, porém em circunstâncias diversas. Primeiro, sobre os degraus, pendurada na janela, agora, em frente esta banca farta de frutas. Estava totalmente paralisada, um torpor inexplicável tomava-a a cada músculo, porém mantinha-se firme de pé, e uma sensação agradável e de conforto revirava-lhe a alma, e as cores das frutas povoavam o seu pensamento. Mantém-se tranquila. Após alguns instantes consegue levantar levemente os braços e escora-se no balcão. Finalmente percebe que aquele não era um dia como os outros, e sente-se ligeiramente atordoada. Repentinamente, todos os estímulos voltam a lhe responder, mas seus olhos estão diferentes, trazem lampejos. Sente em segundos, cada pedacinho de seu corpo, e sente-se inteira. Das pontas dos pés ao último fio de cabelo, cada músculo, tecidos ou nervos, dão-lhe resposta de vida. Sente-se tomada de um ânimo juvenil. As pernas põe-se a correr ligeiras, como não se lembra de ter feito naquele local.

Quebrando radicalmente uma rotina inalterável há alguns anos, retira uma peça estrutural do lugar, interrompendo algo pelo qual sempre zelou, a manutenção da ordem das coisas em seu local de trabalho. Quando retira alguma mesa, ou arrasta algum freezer qualquer, o faz tão somente para que possa retirar alguma poeira escondida ou um sujo do chão, que a vassoura não conseguiu retirar. Tão logo resolva o problema, volta imediatamente o móvel para o lugar, como se dali ele nunca houvesse se afastado. Ela era assim. Desta vez, porém, age completamente diferente. Arrasta abruptamente um grande balcão que servia também como divisória entre uma área de acesso ao público em geral, e outra restrita, onde podem entrar apenas os funcionários, devidamente munidos de crachá e uniforme. Após abrir um grande vão entre uma área e outra, retira uma grande mesa de madeira de dentro, onde os empregados utilizavam para as mais variadas funções, cortar, pesar, medir, embalar, onde também ficam acessórios e instrumentos de trabalho. Após retirar toda a parafernália que sobre ela se encontrava, puxa-a de uma vez, e arrasta-a para a parte central do supermercado, um local onde havia um espaço maior entre as prateleiras, praticamente uma área de confluência, onde durante o dia, quando a loja estava aberta, um grande número de pessoas se cruzava. Afasta um pouco uns caixotes, alguns pequenos balcões expositores, e em instantes, abre uma pequena clareira entre aquele mundo de mercadorias, e bem ao centro, estaciona a grande mesa. Faz todos os movimentos em um ritmo apressado, como se o tempo se tornasse cada vez mais curto, para realizar todas as tarefas que tinha à frente.

Passa um pano úmido sobre aquela mesa, que mais parece um grande tablado, e em seguida, vai rapidamente até uma prateleira da seção de produtos de cozinha, pega uma belíssima toalha colorida de papel, e a estende cuidadosamente sobre ela. Em seguida, vai de um lado ao outro, cruza seções, atravessa balcões, abre e fecha geladeiras, e aos poucos, mas apressadamente, vai enchendo a mesa de produtos. Colocou sobre ela, várias caixas de leites e sucos, garrafas de refrigerante, pães, bolos, salames, defumados, frutas, e uma grande variedade de doces, biscoitos e chocolates. Ajeitou daqui, ajeitou dali, e ornamentou aquela mesa, como se de um grande banquete se tratasse. Em poucos minutos, tinha diante de si, uma mesa como ela mesma nunca havia visto em toda sua vida. Já havia organizado festas de aniversário na família, participado de inúmeras cerimônias de casamento, organizados ceias de Natal, mas nada que lembrasse aquela fartura que acabara de colocar à mesa. Seus olhos brilhavam. Uma luz branca que vinha do teto iluminava todo o seu rosto, e um sorriso farto desprendia-lhe de um canto dos lábios. Carregava um ar de felicidade.

Ao constatar que sua obra estava pronta, corre até o portão dos fundos, que dá acesso à praça, abre-o de uma vez, corre até o meio dos homens e das crianças que vira há pouco e convida-os para uma ceia farta, explicando que o tempo que tinham era curto, e que, portanto, se quisessem aproveitar o máximo o que ela tinha a oferecer, deveriam ser rápidos. Os homens, a princípio, olham uns para os outros, desconfiados, ficam sem entender a oferta, mas diante da insistência da mulher, e do ronco dos estômagos, que reagem instintivamente, diante do pensamento que a surpresa poderia ser verdadeira, não pensam uma segunda ou terceira vez, e vão verificar o que havia por trás daquela porta. Ao verem a ceia pronta, dirigem-se afoitos a ela. Alguns, mais famintos, abrem ali mesmo alguma embalagem e iniciam a degustação, outros acham mais prudente, colocar o que pudessem debaixo dos braços e abandonarem o mais rápido possível o local. Os homens entreolham-se meio sem entender o que viam, mas não podem perder aquela oportunidade. Sobre a mesa, alimentos que nunca tinham tido como saborear, apesar de já tê-los visto algum dia, e havia também aqueles que viam pela primeira vez, era uma descoberta. Embalagens coloridas, frutas saborosas, guloseimas de todas as espécies, estava tudo ali, a disposição daquelas almas nunca saciadas, daquelas fomes crônicas. Quem pensou em saborear aquelas delícias apenas do lado de fora, acabou mudando de ideia ao verem os companheiros já com as bocas cheias e olhos vidrados, e todos abriam vorazmente os pacotes, plásticos, embalagens, rompiam os lacres, fatiavam pedaços, as crianças faziam festa. Ela não participava do banquete, mas olhava o tempo todo, não perdia um movimento sequer, cada mordida, cada um dos produtos que eram abertos, cada olhar de surpresa e indagação. Estava inerte, e posicionada num ângulo tal, que não havia quem pudesse furtar-se ao seu olhar, à sua observação. Tinha a feição serena, mas carregava nos olhos um farol luminoso e o corpo parecia queimar. O frio que sentira mais cedo desaparecera de vez e uma chama incandescente ardia-lhe a alma. Era alta madrugada quando o último homem atravessou a porta de volta para a rua. Sobre a mesa, nenhum alimento sobrara inteiro. Apenas farelos e restos do que fora uma farta refeição. A praça ficara vazia, no entanto. Os homens não voltaram para lá.

Assim que tranca a porta dos fundos, e encontra-se novamente sozinha, naquele supermercado violado, uma sirene alta interrompe o silêncio da noite e luzes vermelhas e giratórias refletem nos vidros do portão principal. O local estava cercado. Um exército de homens armados, com cães, fuzis e veículos blindados arrebenta as fechaduras e num piscar de olhos, ocupam todo o interior do estabelecimento. As câmeras haviam feito o registro e dispensavam grandes interrogatórios, as imagens falavam por si. A mulher não foi poupada. Meteram-lhe uma grande algema e empurram-na para um dos carros. Dentro do supermercado, os homens discutiam e avaliavam o tamanho do prejuízo. De dentro do veículo, ela mantinha a expressão inalterada. Tinha a feição serena e mantinha os olhos iluminados. Quando o policial liga o motor para dar a partida, ela dá a última olhada para o supermercado. Sua face é tomada de um largo sorriso.


FIM


Marcos Vinícius.