Drama da consciência
A ambulância para em frente ao grande
portão de ferro e reduz a luz dos faróis. Um guarda, de prontidão, retira uma
pesada chave da cintura, e abre rapidamente os cadeados. O portão se abre. O
carro avança pela rampa de acesso e as luzes de emergência se apagam. Assim que
estaciona, surgem pelo portão principal dois musculosos enfermeiros, que se
dirigem imediatamente a recepcionar o doente. Ao abrirem o veículo, dois olhos
enormes saltam sobre eles, e os fitam profundamente. Num primeiro momento,
desconcertam-se um pouco, os profissionais. Mas como não era ocasião de se
perder tempo, retiram o paciente que estava transtornado, nitidamente
alucinado, do interior do veículo. Perguntam os enfermeiros pelos recônditos de
suas consciências e memórias se já tinham cruzado com um olhar assim. Mesmo
nunca tendo visto aquele homem antes, era óbvio que estava desfigurado. Que mal
levaria consigo? Parecia ter saído de um momento de fúria. Estava amarrado.
Dois vizinhos e um parente distante ajudaram a segurá-lo. Naquele momento,
encontrava-se aparentemente sob controle, e já um pouco sedado pelos fortes
medicamentos que lhe foram aplicados pelo caminho. Tinha a face dura. Não havia
expressão, além do aspecto de quem teve que conter suas forças, em virtude de
forças maiores o segurarem. Sejam os que vinham pelo interior da ambulância,
seja pela segurança, que o recepcionava na chegada. O corpo estava sob domínio,
mas parecia carregar um sujeito sem alma. Os olhos estavam fixos, talvez, em
coisa alguma. Pareciam mirar o nada que carregava por dentro, como se mais não
fosse que um infinito universo vazio, uma grande noite de silêncios e sem
estrelas. As mãos estavam trêmulas e a boca ressecada. Não havia pronunciado
palavra alguma. Mantinha-se amarrado.
Enquanto os acompanhantes davam a
entrada em alguns papéis, é levado para a ala que passaria a ocupar. Vai
andando. Não olha para os lados. Segue pelo imenso corredor, que não parece
correr por seus olhos. É certo que não o vê. Mas anda como se os passos já
conhecessem o destino, vai em linha reta. Observado, sem observar, não vê os
outros internos, com os quais cruza pelo caminho. Ficará no quarto no final do
corredor, pois mesmo entre os demais doentes poderia despertar atenções e curiosidades,
pois, de fato, se trata de alguém diferente. Ainda não se sabe o que está a
ocorrer. Um caso atípico, talvez.
Dois médicos avaliam o doente, que está
inerte. Tem os olhos voltados para cima, não dorme, mas também não parece estar
acordado. Não emite som algum. O coração bate forte. Os cabelos estão desgrenhados. Não reage às tentativas de diálogo. Os médicos, ainda sem um
diagnóstico preciso, um pouco desorientados, acham mais conveniente deixá-lo
amarrado. Aplicam mais uma dose de remédios, observam mais um pouco e, em
seguida, dada a urgência de outros atendimentos, abandonam-no só, no quarto. Ao
saírem, o homem se mexe. Parece dotado de uma força surpreendente. Num único
gesto, desvincula-se das espessas cordas que atavam seus braços e mãos, como se
fossem finos barbantes, e tenta se levantar. Neste momento, é tomado de um
pânico violentamente incontrolável. E naquele hospital, solta as primeiras
palavras, que saem engasgadas. Você de novo? O que fazes por aqui? Por que não
me abandonas de vez, ó tormento? Não posso mais, responde o espectro que se
acomodava por sobre a mesinha ao lado do banheiro. O doente sente todo o corpo
arrepiar. Terei que acompanhá-lo, agora, para sempre. Chame-me sua consciência.
Sou companheira antiga, e resolvi firmar-me de vez, em ti, por passares tanto
tempo sem notar minha permanente presença. Tens longas dívidas comigo. Não
pretendo deixá-lo. O doente é tomado de um pânico total. Desta vez, tenta
gritar, pedir um último socorro, mas não consegue, o grito é sufocado na
garganta.
O
que queres? suplica o doente. Como consciência que sou, não posso deixá-lo em
grandes dívidas, principalmente, com o maior credor que tens, que sou eu
própria. Afinal, já estás na idade de me dares algumas respostas. Quanto às
perguntas, como agora bem sabes, tenho-as de sobra, tanto as que se referem aos
casos pequenos, quantos às referentes aos de maior gravidade. Por que nunca
atendeu aos meus apelos? Uma vida inteira. São tantos anos... Lembras-te de
quando te corroias de inveja? Esperneei, supliquei, sacudi, gritei aos ouvidos
e nada. Quando te envolveste em golpes e mentiras, fiz de mim fortaleza, para
poder-te segurar. Nunca consegui te conter. Quando te esfolaste, trapaceaste,
quase me dei por morta, mas consegui-me soerguer. Puxei-te pelos braços,
agarrei teus cabelos, e de nada adiantou. Deve-me respostas. Sabia que um dia
nos veríamos de frente.
O doente suava por todos os poros; a mão
tremia e os cabelos, assim como o lençol da cama, estavam ensopados. Inquietava-se
irremediavelmente. As pernas, no entanto, mantinham-se amarradas. O visitante,
que grande incômodo lhe trazia, sentia-se à vontade, esticava-se sobre a mesa,
sorria confortavelmente, e punha-se a falar. Falava, falava, compulsivamente,
como se um mundo de palavras e intenções estivessem fadados a se libertar.
Sentindo o estado de choque do paciente, a consciência resolve, então, se
aproximar. Desce da mesinha e encosta-se à cama.
Algumas horas depois, um alvoroço
percorre o hospital. Os médicos, todos eles, são chamados às pressas pela
direção da instituição. Todos, sem exceção, os que se encontrassem no horário
de repouso e os que estivessem em meio a algum atendimento, deveriam atender à
emergência.. Luzes insistentes piscaram e uma eufórica correria se espalhou
pelos longos corredores. Em pouco tempo, o quarto do paciente estava repleto de
todos os tipos de médicos, enfermeiros, técnicos de equipamentos, especialistas
de toda ordem, a burocracia, representantes do governo e autoridades policiais.
Todos perplexos. Olhavam-se, uns para os outros, sem palavras com as quais
pudessem se expressar. Seria um dia inesquecível para a medicina. No dia
seguinte, estaria estampado nos jornais, o doente havia morrido, incrivelmente
estrangulado pelas próprias mãos. Dizem que perdera a consciência de si.
Marcos Vinícius.