segunda-feira, 30 de março de 2009

A raposa e as galinhas


A raposa e as galinhas.


Já há muito tempo viviam naquele galinheiro. Na verdade, o sonho de seu proprietário, era formar uma grande granja, mas as dívidas que acabou contraindo nos bancos, fizeram com que forçosamente tivesse que optar por um investimento mais modesto. E ali viviam as quatro, praticamente isoladas naquele fundo de quintal, mas recebiam diariamente sua ração de milho, pela qual deveriam retribuir, regularmente, em forma de ovos. Assim viviam, ciscando o chão, bicando as paredes, talvez por alguma carência alimentar, alguma deficiência nutritiva, a falta de cálcio no sangue, ou sabe-se lá o que, constantemente davam umas bicadinhas das paredes laterais do galinheiro. No mais, como de praxe, dormiam cedo, e acordavam cedo também, limpavam suas penas, enchiam os papos, e ficavam a tagarelar. Quem de perto espiasse, poderia imaginar que são antigas amigas, confidentes, companheiras, apesar de aparentemente sempre desconfiadas, umas em relação às outras. A impressão que se tem, é que, olham-se sempre, mutuamente, com o chamado olhar de soslaio, sorrateiro, desconfiado. Em alguns momentos, parecem zangarem-se umas com as outras e chegam a trocar bicadas. Vivem ali, as quatro, a sós, isoladas entre caixotes de madeira, e uma tela de arame, em forma de L que se prende nos cantos do muro de concreto, sem sequer imaginar, que habitam um planeta, com uma população estimada em mais de 25 bilhões de galinhas.

Num dia qualquer, descobrem a firme intenção da raposa que vivia pela mata vizinha, em atacar-lhes pelo meio da noite. As quatro se ouriçam, e entram em uma terrível inquietude, sabiam que tinham chances de escapar, mas que para tanto, precisavam se organizar, e antes de qualquer coisa, era necessário que estivessem unidas naquele momento, pois tinham a noção exata do perigo que corriam, seja pelo brilho dos olhos daquela temível raposa, que seus olhos já tinham tido a oportunidade de cruzar, seja pelos gritos agonizantes das galinhas vizinhas, já entre os dentes de seu predador, que tiveram a infelicidade de ouvir por mais de uma vez. Pode-se dizer que mais que nunca, estavam aterrorizadas. A possibilidade de não se safarem, era terrivelmente considerada.

Passaram o dia inteiro tagarelando. Difícil saber quem tagarelava mais. Estavam visivelmente apavoradas e cada qual, a seu modo, de acordo com seu jeito próprio de conceber e ver as coisas, apresentava uma alternativa, uma receita de salvação que considerava mais apropriada para a ocasião. A galinha mais cinzenta, sugeria para as demais, que fossem todas, no final da tarde, para a parte mais alta do galinheiro, porque por ali, havia uma passagem, para um caixote por sobre o telhadinho, por onde certamente estariam mais seguras. Riscos? Sim, havia. Se o caixote cedesse ao peso, poderiam cair no quintal do vizinho, e aí sim, tornar-se-iam presas mais fáceis, e seriam certamente, devoradas. A galinha mais velha, sugeria o silêncio total quando a noite caísse, pois já era do seu conhecimento que o faro daquela raposa não era dos melhores, e que desconfiava inclusive, que ela identificasse suas vítimas pelo ruído. Acreditava que se mantivessem caladas, literalmente, de bichos fechados, ficariam, pois, protegidas. Riscos? Sim, a condição silenciosa acabaria por obrigá-las a uma posição pouco defensiva, o que em caso de ataque, poderia ser fatal. A outra, a mais franzina, sugeria que passassem a noite apertadas por sob o buraco do muro, pois ali seria de mais difícil acesso à velha raposa, mas havia o inconveniente de não conseguirem dormir, dada a posição incômoda em que teriam que pernoitar. Riscos? Sim. A noite insone, poderia deixá-las mais fragilizadas perante um ataque fulminante. A galinha de crista quebrada, sugeria avançar sobre o animal e apresentava uma estratégia ousada, heróica, onde a raposa parecia mesmo não ter vez. Riscos? Havia. Um descuido, um vôo ou bicada em falso, e transformar-se-iam em penas esvoaçantes.

As galinhas estavam todas convencidas que as alternativas que apresentavam, as suas próprias, eram as melhores, todas as outras apresentavam falhas gravíssimas, irreversíveis, diante das que acabava de formular. Cada uma delas cacarejava com mais veemência e convicção. Ao longo do dia, somavam argumentos às suas causas, que passaram a defender com paixão e fervor praticamente religioso. Cada uma acreditava piamente, que havia encontrado, finalmente, o caminho da salvação. Pulavam sobre o poleiro, tagarelavam, cacarejavam, gritavam, e quase não ouviam as alternativas, umas das outras.

A galinha, do primeiro plano, defendia a saída pelo alto, pois além de acreditar, estar livre de qualquer possibilidade de vir a falhar, via ainda, a alternativa como a possibilidade de uma vitória completa por sobre o inimigo. A saída por cima. Considerava as propostas das demais, que pouco ouvira, como entreguistas e ingênuas. Completamente inviáveis. A que pregava o silêncio, talvez inconscientemente, estivesse mesmo, a legislar em causa própria, na medida em que, sua alternativa, acreditava, era a que menos lhe exporia a riscos, dada a sua idade já avançada. Acreditava que as outras idéias, fossem por demais ousadas, egoístas e, portanto, fadadas ao fracasso. A magricela da turma, considerava muito mais sensato, ficarem as quatro, comprimidas por sob o muro, pois dali não teria como a raposa alcançá-las e que as propostas das companheiras eram irrealistas, e sem qualquer chance de êxito. A que certamente, quebrou a crista, em alguma disputa, ou rinha qualquer, defendia que o ataque ofensivo pode dobrar o inimigo, e dizia-se desonrada em saber que divide o território com companheiras covardes e derrotistas.

Arrastaram-se por horas num debate sem fim. Ali concentravam todas as suas energias, as quais não pensavam em poupar. O clima era tenso entre elas. O dia chegava ao fim, e muito distantes estavam de um consenso, um acordo. Tagarelavam, tagarelavam. As defesas cada vez mais apaixonados e os ataques cada vez mais fulminantes e mortais. As galinhas cacarejavam umas contra as outras, e se odiavam como nunca haviam feito. Nunca foram tão desunidas e loucas. Não deram por si, quando a raposa engoliu a todas.



Marcos Vinícius.

domingo, 29 de março de 2009

Efeito borboleta possível.


Efeito borboleta possível.



O passeio em uma grande locadora pode ser muito interessante, não só pela gama imensa de filmes ainda não assistidos que ela oferece, como pela oportunidade de relembrar de filmes já há muito vistos, tantos aqueles, que a muito custo e sofrimento, chegamos ao final, quanto aquelas histórias inesquecíveis, que não só indicaríamos para amigos ou desconhecidos, como estaríamos sempre prontos para assisti-los por uma segunda vez. Os filmes podem nos fascinar por uma série de motivos, seja pelo desempenho ímpar de seus atores, pelo cenário, fotografia, seja pelo enredo, pela sofisticação da produção, por emoções proporcionadas, pelo choro ou pelo riso, e por uma série de outras razões.

Revejo na prateleira o filme “Efeito Borboleta”, que assisti em uma sala de cinema cheia, quando do seu lançamento. Achei uma experiência muito interessante. Não me lembro mais dos detalhes da trama, mas o que faz deste filme, especial? Após estes anos todos, não me lembro de comentários negativos a respeito dele, ou de alguém que dissesse não ter gostado. Além de ser um filme, que praticamente, prende a atenção do início ao fim, ele praticamente nos traz uma lição, daquelas que costumamos chamar de lições de vida. Sim. Ao nos mostramos de forma enfática o óbvio. Qual seja, o quanto um detalhe pequeno da vida, um fato menor, aparentemente sem muita importância, pode mudar, fatalmente, irremediavelmente, o rumo de uma vida, ou o curso de uma grande história. O filme desperta certo sentimento de responsabilidade com nossas próprias vidas, na medida em que a todo o momento nos faz recordar, como nossos atos, além de simples ações em si, por menores que sejam, podem acarretar tão enormes e fatais desdobramentos, tantos os esperados, quanto os fatalmente imprevisíveis.

O filme é a história de um jovem, com um distúrbio grave, relacionado a memória, que adquire condições de voltar ao passado, e assim, fazer e refazer ações da sua vida, para melhorar-lhe o destino, para restaurar algo em sua vida, que sempre acreditava pudesse ser mudado. O enredo é uma sucessão de idas e vindas, onde a cada alteração, feita através da intervenção no tempo, o personagem se vê mais atolado em situações dramáticas, quando não trágicas. Em nossas vidas reais, sabemos que nem sempre, temos como voltar atrás. Talvez nisto, esteja a pertinência do filme, lembrar-nos da nossa condição tipicamente humana, tanto no sentido das nossas próprias limitações, quando no das possibilidades conquistadas ou decisivamente perdidas, que vamos somando ao longo do tempo. Diz José Saramago, em seu “A viagem do Elefante”, “Têm razão os cépticos quando afirmam que a história da humanidade é uma interminável sucessão de ocasiões perdidas”.

Muitos querem nos fazer crer, que exista já um destino traçado, para cada homem, para a humanidade inteira, cujo desenrolar não tem como ser alterado pelas ações humanas, pois pela eternidade dos tempos, foi já traçado nos laboratórios dos deuses. Olhando para a história, para o tempo passado, retrospectivamente, temos a falsa impressão, de que o presente sob o qual montamos assento, foi sempre uma fatalidade, sem caminhos ou rotas alternativas, do qual não há como escapar, um fenômeno inexorável. Como se a história inteira fosse uma grande novela traçada por mãos divinas, cujo destino fosse inevitável, e aos homens nada mais coubesse, que simplesmente, arrastar-se pelo fio condutor de uma história, cujo fim já está definido, desde o início.Não creio que assim seja. Não que a vida não seja dotada de sentidos, mas que estes sentidos se vão construindo, com o que fazemos deles.

Sabemos o quão poderosas são as grandes forças da história. Para fins de ilustração, sabemos que independente do que pessoalmente fizeram os grandes inventores dos séculos XVII e XVIII, o fenômeno chamado de Revolução Industrial, ocorreria de qualquer maneira. Não fossem Cabral ou Colombo, a América certamente seria descoberta pela Europa, pela mesma época, ou quem sabe, pelas mesmas naus. Não fosse o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, em Saravejo, o mundo, também não se pouparia da grande carnificina que foram as grandes guerras mundiais. Mesmo que Marx não houvesse nascido, a história não se livraria da longeva luta de classes.

Há grandes fatos e fenômenos históricos, que parecem mesmo dispensar as realizações pessoais, o heroísmo de determinados personagens, a persistência de alguns sujeitos. Mas isto é uma meia verdade. Para além das forças da história, que são de fato, poderosas, justamente por serem fruto das opções humanas, para além das forças do destino, traçado por deuses, que parecem desconhecer o perdão, a responsabilidade do indivíduo sobre sua própria vida e sobre a história do mundo é de fato, muito grande. Um passo em falso, o caminhar lento pela avenida apressada, pode ser fatal. Sem nos esquecermos, ainda, que os homens constroem seus mitos, de acordo com suas escolhas ou crenças, pois somos nós, quem no fim das contas, os elegemos. Para que possamos refletir neles e eles em nós. Somos o reflexo do espelho que construímos com nossas próprias mãos e desejos. As nossas opções ou escolhas, quer acreditemos nisto ou não, certamente deixarão nossas vidas, o mundo e a história, melhores ou piores. Podemos sim, alterar o destino, o efeito borboleta possível.



Marcos Vinícius.

terça-feira, 17 de março de 2009

Descoberta da feiúra


Descoberta da feiúra


No fundo, no fundo, nunca pensei que pudessem ser feias as mulheres. Pelos motivos óbvios que já todos conhecem. Desde o início dos tempos, sejam os nossos, sejam os do mundo, a imagem feminina sempre esteve associada ao mito da beleza, da criação da espécie, a fonte primordial da vida. Seja pelos mitos, seja pelo prazer que podem proporcionar, as mulheres sempre inspiraram as mais belas canções, os mais admirados retratos, e os mais líricos dos poemas. Tem sido assim. A presença feminina esteve sempre associada a algum tipo de encantamento, é o que se ouve sempre, nas mais variadas línguas, nos mais diferentes tempos ou lugares.

Os homens muitas vezes, pretendem lhes roubar o que se tornou de direito. Ao estudarmos, por exemplo, a evolução humana, embalarmos o berço da espécie, encontraremos nomes que parecem querer deixar de lado, elas. Homo erectus, Homem de Neandertal, Homem de Cro – magno, Homo habilis, sapiens, e por aí afora, como se fosse a grande forra, como se a história humana só de homens tratasse. Onde a própria espécie, tornou-se, subjetivamente masculina, ao ser denomina de humanidade -, e não outro nome qualquer que lembrasse mais a elas que a nós. As palavras são poderosas, e não conseguimos dimensionar a força que podem adquirir ao longo do tempo, principalmente quando eternamente repetidas. Mas como algumas naturalidades, não têm como serem encobertas, a beleza mágica que trazem as mulheres ao longo do tempo, acabam por se afirmar no inconsciente coletivo, seja através das evidências religiosas, científicas, ou por uma paixão avassaladora qualquer que pode se revelar ao se cruzar uma esquina.

Um dos nomes divinos que sempre me trouxe encantamento foi Paccha Mamma, Mãe Terra, deusa da América pré-colombiana, que encarna o ideal feminino como força criadora. Osíris, no Antigo Egito, não atingiria a eternidade, ou até mesmo a fartura anual das colheitas, não fosse pelas mãos mágicas de sua esposa-irmã Ísis. A sombra da beleza das deusas antigas, e praticamente mortas, permanece vivíssima em nossas elucubrações poéticas, em nosso imaginário. Não ouvi quem dissesse que Eva fosse feia, e nem acredito que Adão, fosse de fato, definitivamente, resistir aos seus encantos. Assim é. Ademais, apesar de todas as grandes descobertas científicas, dos inúmeros fósseis que foram encontrados ao longo dos séculos, são ainda, as ancestrais femininas, as mais populares e representativas das origens da nossa espécie. Seja Lucy, a fêmea australopitecínea, considerada a grande mãe de todos nós, africana, seja Luzia, uma das mais antigas representantes humanas, cá das Américas. Talvez os homens se enganem ao acreditarem que Deus, fez a nós, sua imagem e semelhança. Acredito mesmo, que muitos impérios, tenham sido conquistados, territórios anexados, exércitos inteiros destroçados, para que o rei poderoso pudesse tornar-se, no máximo, atraente, aos olhos da amada. Talvez possa o desejo ter sido o grande motor da história.

Dados estes e tantos motivos é que nunca acreditei que pudesse achar feias as mulheres, claro está que algumas podem ser mais belas e atraentes, em função de todo tipo de sortes que pela vida se vai encontrar, mas feias, de todo feias, nunca acreditei que pudessem, no fundo, no fundo, serem. Seja pelos atributos naturais, seja pelo imaginário milenar, que levamos guardados em nós, são fundamentalmente, belas. Recentemente, porém, descobri, uma fórmula perversa, pela qual pode deixar uma mulher, e assim ainda podemos dizer, completamente desprovida de qualquer beleza. Uma mistura heterogênea de vaidades pessoais, disputas por poder, cargos ou influência, que fazem com que toda a beleza historicamente construída, torne-se um grande borrão, como imaginava, que apenas aos homens pudesse ocorrer. Ledo engano. Um sistema complexo, envolvendo intrigas, trapaças, difamações, inescrupulosidades, faz com que uma feiúra pálida, amorfa, exale do ventre de rugas precoces, tristemente femininas. Descobri, então, o quanto pode ser feia uma mulher.



Marcos Vinícius.