A respiração havia se alterado e
tornara-se mais leve, o ronco profundo do sono total e milenar dava lugar a um
suspiro breve e aliviado. As pálpebras cerradas prenunciavam um ligeiro sinal
que talvez fossem piscar. A musculatura do rosto duro, pétreo, distendia-se,
como se, em breve, fosse possível, um roçar dos lábios, um ranger de dentes,
sabe-se lá, um sorriso. O corpo gigante, imóvel, plantado sobre a areia branca,
parecia despertar. Um primeiro movimento, mínimo, manifesta-se nas pontas dos
dedos, que se arrastam e se afundam um pouco na areia fina. Os minúsculos grãos
areníticos deslizam-se levemente uns sobre os outros, antecipando-se às
mudanças de posição daquele homem enorme, forte e corpulento que, suavemente,
começava a se mexer. Afora uma malha curta, que lhe cobria as partes íntimas,
estava a descoberto. Era muito grande, titânico, aparentemente, de uma força
descomunal. Tórax, braços e pernas eram músculos proeminentes. A barba estava
coberta por uma poeira do tempo que lhe fazia aparentar uma idade mais avançada
do que realmente tinha. Num súbito, desloca-se, vira para o lado, inquieta-se.
Um estrondo enorme, como um raio a rasgar os céus, quebra o silêncio absoluto
que há pouco imperava. Em poucos segundos, arregala os olhos, põe-se sentado e
a expressão, deslocando-se do sono à vigília, torna-se atônica e assustada. Havia
dormido muito mais do que imaginava ou planejara. Desde que recebera das
divindades superiores, a expressa ordem, de carregar sobre os ombros, a abóboda celeste, fora tomado não
apenas por um grande cansaço, como também, por uma forte dor lombar. Sabia dos
riscos que havia diante de qualquer tentativa de furtar-se ao castigo que lhe
fora imposto e, portanto, jamais imaginou deixar de cumpri-lo. O incômodo, no
entanto, tornara-se tal e a fadiga tamanha, que em uma rara oportunidade,
resolveu entregar-se a um breve cochilo. O que não imaginava é que pudesse
dormir tanto. Não fora a eternidade completa, mas um sono milenar.
Sobressalta-se. Pelos deuses ancestrais, como pode ausentar-se do tempo? Com os
olhos ainda um pouco embaçados, constata que a imensidão dos céus continua no
mesmo lugar que a deixou, antes que a sonolência profunda tomasse conta de si.
A enorme estrutura mantinha-se ali, ao seu lado, a espera que algum dia seu
suporte divino viesse despertar. Atlas aproxima-se e prepara-se para, mais uma
vez, soerguê-la. Antes, porém, detêm a observá-la e percebe que algo por ali
parece ter se alterado. O azul celeste ofuscara-se, perdera o brilho, colunas
de fumaça rasgavam-lhe ao meio e um cheiro forte, putrefato, substituía o aroma
das flores e ervas. Um ruído contínuo e incômodo, um monoruído, como se
proveniente de um maquinário maior que o próprio universo, ocupara-se do
silêncio musical dos cantos dos bichos e do rufar das cascatas e águas.
Preocupado com a possibilidade de um castigo ainda maior sobre seu destino e
ombros, talvez em função do descuido e da longa ausência, do acaso em deixar o
firmamento à deriva, procura levantá-lo de uma só vez, o mais rápido possível.
Em contrapartida, sentia-se revigorado e fortalecido. Por mais danos e
prejuízos que a orfandade temporária dos céus possa ter causado, o descanso
advindo do sono longínquo, restaura-lhe as energias. Imagina que agora pudesse
suportar sua carga por eras a fio. Rapidamente, espreguiça-se esticando todo o
corpo, os braços compridos, as pontas dos dedos, dos pés e das mãos, gira
lentamente a cabeça sobre o pescoço em colunata, sente o conjunto da
musculatura colocar-se em alerta e prontidão e em um esforço sobrenatural,
ciclópico, levanta, num arrastão, a abóboda celeste com suas estrelas vivas e
as cadentes. A força, porém, fora tanta, colossal, que o globo terrestre colado
a ela, depois de milênios, coexistindo grudados, desloca-se e levanta-se também,
a reboque. Sobre os ombros divinos, uma esfera grandiosa, imensa, procurava se
acomodar. O peso, porém, tornara-se quase insuportável e Atlas começava a
afundar-se. No entanto, resiste; retesa todos os músculos, imprime-lhes a força
mais hercúlea que possa empreender, dá uma chacoalhada no mundo e levanta-o
como que em definitivo. Assim que a imensa esfera posiciona-se exatamente sobre
sua cabeça, uma torrente de dejetos despenca sobre seu corpo titânico. A
princípio, fere suas costas, o tronco, em seguida, escorre por toda a
corpulência, riscando a epiderme. Ele flexiona os braços e dá-lhe mais uma
brusca sacudidela, tentando encaixar melhor as órbitas e ondas gravitacionais e
livrar-se do caldo que derramava sobre sua pele levemente iluminada. Não se
sabe se devido a um mal alinhamento do eixo terrestre, o planeta derretia sobre
as espáduas que o soerguiam. Incomodado e desentendido, Atlas procura elevar as
estruturas para o mais alto que pode, põe-se sobre as pontas dos pés, gira-a à
esquerda e à direita, sacode-a, e nada. O derramamento não se contém. Ao olhar
para cima à procura de algum recurso onde pudesse estancar o vazamento, uma
ilha de plástico, fedorenta, uma imensa gosma multicolorida, atlântica,
despenca sobre seu rosto, como se lhe caísse um tapa. Raspa a barba no peito e
a massa compacta transborda pelo dorso, pernas e grudam lhe os dedos dos pés.
Gases soltam-se e ocorrem pequenas explosões, rejeitos químicos, nebulosas
fétidas, contaminadas, ardem-lhe os olhos e uma lágrima salgada, avinagrada,
escorre sobre as narinas irritadas. Não consegue mais olhar para cima. Pensa em
atirar tudo pelos ares, mas detém-se. Um suor frio brota por toda sua pele,
quando uma chuva ácida e um rio apodrecido despencam-se em cascatas turvas e envenenadas,
intoxicando seus poros abertos. Cadáveres, carcaças de peixes, dos seres voadores, dos que
vivem nas rochas, entornam-se sobre o corpo atlético, olímpico, que começa a
curvar-se. Em seguida, há um contínuo escoamento de sangues, seivas, esgotos e
lixos radioativos. Atlas cai de joelhos. O peso vai tornando-se insustentável.
Atlas respira fundo, tentando capturar o oxigênio, que poderia reanima-lo, mas
uma fumaça escura e densa, tomada de partículas e fuligens, entope lhe os
pulmões. Enquanto tenta, ainda, equilibrar-se, uma tosse seca e persistente,
mina-lhe resistências e uma lama amarronzada e tóxica, tempestuosa, desaba do
alto, cobrindo a totalidade do corpo extenuado. Um manto de metais pesados,
alumínio, ferro, arsênio, manganês, chumbo e zinco, envolvem o gigante e dobram
lhe a força titânica. O que à primeira vista, lembrava uma chuva de astros,
como se a abóbada celeste estivesse a desabar, era na verdade, uma tempestade
de bombas que explodiam e queimavam a lama, que endurecia. Atlas petrificava-se.
As cinzas das pólvoras grudaram-se na crosta entumecida e o gigante
transformara-se numa imensa montanha rochosa e cinzenta. Sobre ela, o mundo e
os céus balançavam, em um precário equilíbrio.
Marcos Vinícius.