Pode-se dizer que o ano em que
nasci, 1967, não foi um ano qualquer, como nenhum outro o é, não apenas porque
decididamente pus-me neste mundo, mas por uma série de outros episódios, com
certeza, mais relevantes, que marcaram para sempre, esta ocasião em que me foi
concedido o benefício do nascimento. Foi nele em que perdemos personagens
importantes do mundo contemporâneo, como Ernesto Che Guevara, vítima de uma
emboscada na Bolívia e, segundo Jean Paul Sartre, autor de “A Idade da Razão”,
“o ser humano mais completo de nossa era”, e o mineiro João Guimarães Rosa,
autor de “Sagarana” e “Grande Sertão Veredas”, clássicos da literatura
universal. Ainda neste mesmo ano, assumiria a presidência da República do Brasil,
o General Costa e Silva, que no ano seguinte, 1968, com a decretação do Ato
Institucional Nº5, implantaria em nosso país, um dos períodos mais
duros, autoritários, repressivos e sanguinários da história brasileira. Mas
como temos, humanos que somos, a habilidade inigualável de sempre nos
reinventarmos, dada a nossa persistência em sobrevivermos enquanto espécie,
1967 foi também o ano em que Gabriel Garcia Márquez publicou o memorável e
fascinante “Cem anos de solidão”, lançando um olhar inédito e definitivo sobre
nossa América Latina, Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram “Alegria, alegria”
e “Domingo no parque”, Glauber Rocha estreava nas telas do cinema com “Terra em
transe” , as pílulas anticoncepcionais chegavam às farmácias, possibilitando o
que se convencionou chamar de Revolução Sexual e na Cidade do Cabo, África do Sul, foi realizado o primeiro
transplante de coração; o órgão, de uma jovem de vinte e cinco anos
possibilitou a sobrevida de um homem de cinquenta e cinco. Mas, talvez como uma
demonstração de que talvez, não estivéssemos, afinal, com esta bola toda, o
transplantado veio a falecer dezoito dias após a cirurgia. Para não prolongar
demais em citações e lembranças, citaria por fim, como mais um símbolo de um
ano, que agora, me sopra aos ouvidos, o filme que nesta ocasião, levaria o prêmio
do Oscar, e que traz um título curioso e sugestivo, “O homem que não vendeu sua
alma”. Não é pouca coisa. Mas enfim, no dia dezenove de abril, completei exatos
cinquenta anos de existência e vida. Confesso que, ultimamente, não tenho tido
muita paciência para ler os jornais, mas neste dia vinte, um dia após o
aniversário, resolvi dar uma breve olhada neles, para ver as mais recentes
bobagens que nossa humanidade metida a besta, resolveu aprontar bem no dia em
que completava meio século aqui neste mundo. Infelizmente, nesta perspectiva,
não há muito o que comemorar. As notícias que as páginas enfadonhas dos jornais
trazem são efetivamente desalentadoras. O mundo parece ter se enfiado em uma
galeria de horrores e a violência extrema pauta o noticiário, praticamente da
primeira à última página, de cabo a rabo, desde as violências que nos rodeiam
mais imediatamente, nas vizinhanças, com as ações dos bandidos pequenos,
assaltantes e malfeitores de toda a ordem, até as investidas dos grandes
bandidos, transformados em líderes mundiais, autoridades, figuras públicas,
presidentes, que nos ameaçam com seus golpes, delírios de poder, bombas e
políticas de extermínio, em uma espiral de atrocidades, que não tem fim. O
alucinado representante dos estadunidenses, com seu topete gigante de
arrogâncias, parece decidido a tocar fogo no mundo. Seus porta-aviões
aproximam-se da Coréia do Norte e ameaçam atacá-la, esta por sua vez, disposta
ao revide, talvez não se intimide, em utilizar seu arsenal nuclear. Difícil
imaginar o que nos aguarda no dia seguinte ao acirramento das hostilidades e à
detonação do conflito. Aqui em nosso país, transformado em uma grande pocilga,
o banditismo está na ordem do dia. Como se não bastasse ostentar uma das mais altas
taxas de criminalidade e homicídios do mundo, onde mata-se por nada, e morre-se
na condição de alvo fácil ou vítima de balas perdidas, nossas lideranças
políticas entregam-se a tarefa covarde de eliminar, sem qualquer
constrangimento ou pudor, de forma indireta e gradativa, sem tréguas, os
pobres, os trabalhadores, desempregados, aposentados, miseráveis de toda ordem,
no campo e nas cidades, com uma sucessão de golpes, que se sucedem, um após o
outro, dia após dia, seja na calada da noite ou sob a luz dos holofotes. Fim da
aposentadoria, eliminação de direitos trabalhistas, congelamento por décadas de
investimentos em educação e saúde, sucateamento de hospitais, postos de saúde,
escolas públicas, fechamento das farmácias populares, esquemas de corrupção em
escala dos bilhões de reais, valores que nossa imaginação não consegue
dimensionar. Somados a um desastre que se faz completo, assistimos ainda a um
crescimento assustador de um fascismo revigorado, entre jovens e velhos,
articulados em redes sociais, aliciados por organizações multibilionárias
alienígenas, pelo pensamento único, que leva para ruas uma multidão de imbecis,
fantasiados de verde e amarelo, que clamam por intervenção militar, levantam
bandeiras genocidas, e apregoam um ideal de liberdade, proveniente das
incubadoras dos mais reacionários golpistas, raposas da política, agentes de
capital financeiro e do neocolonialismo, que atuam à distância, lançam suas
pedras e escondem as mãos, sujas de muito sangue, protegidos pelo anonimato que
lhes confere a tecnologia digital e pela nossa eterna e reciclada ignorância. Não
é pouco, mas somos um país pródigo em falsificações. A grande mídia, ela
própria, conluiada em uma rede de tevês, jornais, revistas, através de seus
editoriais, programações, novelas e afins, tem como tarefa maior, a arte dos
currais, a destruição do pensamento e o fim da política como geradora do bem
comum. Aqui se faz a política menor, rasteira, mafiosa, medíocre, fábricas de
mentiras que se fazem verdades e verdades que são grandes mentiras. A arte do
engano, a indústria da manipulação, onde o jornalismo exibe sua face mais
degradada, corrupta e perversa. Não há tréguas nesta guerra, onde os pobres são
a única vítima. Diante de uma geração que tem como referências Jair Bolsonaro, Kim
Kataguiri e que elege pelo DEM, Fernando Holiday, vereador da cidade de São
Paulo, compreende-se o que deveria causar espanto, o fechamento da Escola
Municipal Doutor José Queiroz, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, após ser
invadida por criminosos vinte e cinco vezes em apenas dois anos, símbolo de
nossa promiscuidade moral. Após o último assalto, no ano passado, os pais
pararam de levar os filhos à escola e os funcionários se recusam a trabalhar.
“Foi um episódio muito traumático.(...)trancaram os funcionários em uma sala e
roubaram tudo. No final, ainda colocaram fogo em livros e carteiras”, relata o
professor da escola, José Eudes Santos. O tema foi manchete em jornais do dia
vinte de abril de 2017. Como se vê, não é fácil chegar aos cinquenta anos.
Aqui, tenho apenas duas certezas. Como alguém já o disse, sem qualquer sombra
de dúvida, tenho agora, muito mais tempo para trás do que para frente e que se
não chegamos ainda ao fundo do poço do mundo e do país que temos, é porque ele
está muito abaixo do que até ontem imaginávamos. Para comemorar, o fato de ter
sobrevivido.
Marcos Vinícius.