À deriva
Deus, sentindo-se indisposto e
cansado, e desconfiado, que talvez possa lhe escapar a imortalidade, que muito
provavelmente, não passara de ilusão, resolve fazer uma criatura nova, que
pudesse, quem sabe um dia, substituir-lhe na missão de gerir o mundo tão zelosamente
criado por ele. Preocupa-se em imaginar que sua criação possa ficar um dia à
deriva, a deus dará, sem que um comandante à sua altura, estivesse incumbido de
traçar rotas e destinos. Sempre
alegrara-se em criar espécimes de todos os tipos, vegetais, animais, rochas e
minérios das mais variadas formas, cores e nomes. Depois de um tempo infinito
de criações, sua habilidade em gerar vidas era incontestável. Povoou o mundo
com uma diversidade incrível que fascina mesmo o mortal mais desatento. Entre
as plantas, reuniu nelas todas as cores que conseguiu misturar, desde aquelas
que já carregam nomes, até aquelas tonalidades que ainda não foram possíveis
serem nomeadas, pois as palavras parecem não abarcar todos os tons que existem
no mundo. Flores e plantas para todos os ambientes, desde os territórios mais
úmidos até os mais áridos e inóspitos. Até as grandes formações rochosas, onde
parece não haver um naco de terra sequer, arbustos exuberantes e flores
exóticas desenvolvem-se por milagres. Quanto aos animais, tanto não poupou
esforços, e ao longo de sua longa existência criou de todos os tipos,
extinguindo alguns, por não se adequarem mais às condições ambientais,
aperfeiçoou outros, e todos veem-se metarfoseando, em um jogo de erros e acertos,
até que organismos mais eficazes e amigáveis possam se interagir mais
eficazmente com a natureza circundante, em um novo habitat. Animais voadores,
aquáticos, terrestres, microscópicos, que vivem nas profundas galerias nos
subsolos. Assim levou sua existência, por milênios e milênios a fio, como
fiador, artesão da vida.
Mas agora via sua saúde
abalar-se, já não tinha mais aquele vigor da juventude, quando em ímpetos
criativos, criou tudo que há. Tinha uma sensação de cansaço, a respiração
tornara-se ofegante, e a memória, muitas das vezes, vem a faltar-lhe
comprometendo seus grandes projetos e pensamentos. O tempo é fatalidade até
para os que se imaginam imortais. Se não é a vida que está a esvair-se, no
mínimo, é o momento de aposentar-se, pois uma indisposição sintomática e
crônica, diz que é hora de deixar a outro o comando do mundo, da sua complexa
criação. Era um pai responsável com sua criatura e não pretendia deixa-la à
própria sorte. Como faria um sucessor? A princípio, imaginou criar alguém a sua
imagem e semelhança, mas por fim, concluiu que isto talvez pudesse lhe trazer
mais dores de cabeça do que soluções, e além do mais, um breve instinto de
vaidade lembrou-lhe, que a partir de então, não seria mais o único. Como
durante sua vida inteira havia se
dedicado à concepção de um mundo perfeito, onde as mais variadas formas e
espécies se intercruzam em um fabuloso ecossistema, tudo funcionamento na mais
perfeita ordem e harmonia, numa sucessão de paraísos, haveria desta vez, quem
sabe, em seus dias finais, conceber quem pudesse substituí-lo, para que sua
grande obra de arte, se não pudesse atingir a eternidade, como ele mesmo sabia
hoje não ser imortal, pelo menos que pudesse prolongar-se por um tempo maior.
Uma dor insuportável faz
dobrar-lhe as costas. Uma tosse seca e persistente, quase lhe tira o fôlego e
um clarão rompe em seus olhos. Sente-se tonto, recosta-se em um canto do
firmamento, e põe-se a riscar os dedos entre as nuvens. Sentindo-se fraco e prevendo não ter mais
saúde para a difícil missão que lhe cabia, uma ideia súbita lhe vem à mente. Imediatamente,
levanta-se, põe-se a andar em círculo, e observa, do alto, bem alto, o mundo
abaixo a girar. Mas como ainda não havia pensado nisto? Pensa. E os céus, como
se soubessem do seu pensamento, irrompem em trovões, que apenas se calam,
quando Ele levanta a mão gigante, exigindo silêncio. Uma suave luz azul ilumina
sua face, que sorri confortavelmente, como se parte considerável de seus
problemas tivesse sido solucionada. Sim, era isto. Uma criação nova, coisa que
o mundo ainda não conhecera, que não constava de seus experimentos, um ser
dotado de um cérebro bastante sofisticado, capaz de produzir idéias,
pensamentos, ciência, conhecimento, e de racionalizar. Um cérebro que ao longo
dos anos, tornar-se-ia tão sábio e inteligente, que dotaria o mundo de um
avançado sistema de auto-gestão, onde na ausência do Pai, a vida seria
independente, autônoma e a liberdade plena.
Abriu seus arquivos, mexeu,
remexeu, espalhou projetos, fez anotações. Não haveria como não dar certo. O
que havia criado que até hoje não funcionara perfeitamente? Vez ou outra, em
função de alterações climáticas, ambientais, uma espécie ou outra desaparece,
dando lugar a alguma outra nova, daí as forças se recompõem, e a vida adquire
nova ordem e equilíbrio. Faz cálculos complicados, rabisca daqui, dali, revira
fórmulas antigas, acrescenta elementos novos, apanha receituários, altera
códigos, manipula frascos e substâncias, produz cores e fumaça. Finalmente,
tinha diante de si um produto novo, o projeto de um cérebro como nunca havia
feito. Sabemos como são inteligentes os mamíferos, os primatas, mas nada que se
iguale a um cérebro capaz de produzir linguagens, história, conhecer, às vezes,
de perto, segredos da engenharia do Pai, talhado para as artes e para a
filosofia. Pronto, o mundo estaria pronto, a criatura estaria preparada para
sua maioridade, poderia sobreviver ao criador. Angustiara-se por não ter
pensado nisto antes, e que apenas o adoecimento e a proximidade da morte,
teriam lhe despertado tão grande ideia, que agora o livrava de preocupações,
pois a criatura livre cuidaria ela mesma de si.
O projeto ficara pronto, tudo já
estava traçado, rascunhado. Faltava agora colocar a divina ideia em prática,
executar o sofisticado plano, uma vez que havia concluído o esboço. Como era
uma invenção completamente nova, pretende construí-la com material mais
resistente, pois assim teria o cérebro mais tempo para melhor conhecer toda a complexidade do mundo e sua
história. Seu potencial deveria desenvolver-se aos poucos, gradativamente, anos
após ano, como os bons vinhos. Só o tempo e as experiências iriam trazer todo o
conhecimento e sabedoria necessárias para a execução de sua missão. Se imortal
não fosse, pelo menos que durasse muito para dar conta de tantos mistérios e
tanta diversidade que é a sua obra. Imaginou uma matéria prima que pudesse
sobreviver aos séculos, longeva, para que as decisões que viesse a tomar no
futuro, possam ser fruto de um pensamento elaborado, um conhecimento acumulado,
digamos, uma razão constituída. Coisa que não se adquire de uma hoa para outra,
por mais sofisticado que seja o sistema cerebral, com suas ramificações, seus
circuitos neurais e químicas, é necessário dar-lhe tempo, para atingir uma
maturação mínima.
Revira seus pertences, abre e
fecha portas e gavetas, procura em suas exageradas prateleiras de grande
artificie, uma matéria prima que estivesse à altura da nova criação. Algo como
kriptonita, uma substância especial, que pudesse dar ao novo invento, um
aspecto de superioridade. Não podia ser matéria fraca que viesse a se quebrar,
diante da primeira adversidade, ou antes, tornar-se débil e senil, quando suas estruturas, firmavam-se evoluídas e
avançadas. Não poderia utilizar os mesmos elementos com o qual constituíra
todas as espécies e feitos anteriores, teria de encontrar algo bem apropriado. Neste
dia não tivera descanso, antes de dar forma à coisa, queria definir muito bem
seus detalhes, todas as implicações e regras de funcionamento, afinal, desta
vez, o trabalho tinha uma característica diferente, pois representava a
possibilidade da sobrevivência de sua obra, quando aqui não mais estivesse. Apesar
de sentir-se cansado, sente-se também orgulhoso, pois apesar das dores e
tonteiras, ainda é capaz de ideias brilhantes. Não há quem acumule tantos
poderes e consiga isentar-se de alguma vaidade. Mira-se no espelho das águas.
As rugas do tempo, ainda não lhe subtraíram de todo a beleza, os olhos dão
sinal de esgotamento, mas exprimem grandeza e compaixão. O tempo não poupou nem
a ele próprio, e agora percebe que a obsessão pela imortalidade era mais uma
doce ilusão da juventude, não há poder ou império que tenha sobrevivido à sua
mortal e destruidora ação.
Sente uma súbita sensação de
esgotamento, como se repentinamente, suas forças e poderes fossem lhe faltar. A
tosse seca, mais vez, vem para quase estourar os pulmões. Os braços são tomados
de um forte formigamento e as pernas estão trêmulas. A sensação de mal estar
parece incontrolável. Estica o corpo para o alto, e joga seu cabelo ao vento. O
ar frio das galáxias proporciona-lhe uma breve sensação de conforto, mas era
por pouco tempo. Em instantes, é tomado por uma ansiedade que lhe causa náuseas e vertigens. Estica outra vez o
corpo, enche o pulmão com os ares do infinito, estica braços e pernas, e
sentindo um pouco de alívio resolve então, retomar ao trabalho. Sabe-se lá que
mal é este. O melhor mesmo é concluir logo sua obra, pois não sabe ainda quanto
tempo terá. Vai até sua grande oficina, ali estão reunidos todo o instrumental
que na maioria das vezes utilizou para seus trabalhos, projetos de espécies,
ferramentas, medidores, calendários, relógios, réguas, pincéis, vasilhames,
bisturis, tubos de ensaio, e toda a parafernália que faça jus ao ofício de um
grande criador. Uma infinidade de portas, números, gavetas, armários, carrega
ali o testemunho de tudo que já existiu. Ele anda apressado de um lado para o
outro, ainda que sofra um pouco com a falta de ar, e as pernas não tenham
recuperado a firmeza. Quanto mais lhe esgota a força física, mais pressa tem em
ver concretizada sua última boa ideia. Vai de uma mesa a outra, mistura, amassa
daqui, ajeita dali, estica, contorce, faz ligações, enxuga a testa, dobra,
desdobra e modela. Ao levantar os braços para apanhar os ingredientes, a
substância primordial, nas prateleiras superiores, uma ligeira tonteira embaça
seus olhos e lhe prejudica a visão.
Mesmo às escuras, tateia as maçanetas, as frestas dos escaninhos, abre uma
gaveta e retira de lá, a matéria que dará vida à criatura dotada de um cérebro
exageradamente capaz. Sem enxergar direito, com a visão turva e sombreada,
apanha a substância que faltava para dar corpo ao projeto. Faz os encaixes
devidos, nisto era mestre, e não havia cegueira que o impedisse de executar
estes ajustes finais, com o que já estava acostumado há quase uma eternidade.
Mexe, mistura e apara. Em instantes, com a experiência de quem domina a matéria
e a vida, a obra fica pronta, e com um sopro vivificante e criador, lança uma
novidade ao mundo. Aos poucos, vai recuperando a visão, e vai admirando-se e encantando-se com a beleza e
perfeição que acabara de colocar a perambular pela terra. Era o que faltava.
Agora poderia ausentar-se tranquilo, não seria o destino do mais azul de seus
planetas, que iria trazer-lhe mais dores de cabeça. Estava em boas mãos. Era
uma espécie bípede dotada de um cérebro dos mais sofisticados e ramificados que
a natureza conheceu. O criador respira tranquilo e vira-se para trás para
fechar as gavetas e armários que deixara abertos, e pasmo, constata que
confundiu-se ao misturar os elementos. A obra não saiu como a encomenda. Fizera
a criatura, como fizera a maioria das espécies animais, de carne e osso. Sim, o
cérebro tinha um potencial fabuloso, mas era carne, matéria prima que não
sobreviveria o tempo necessário, para que adquirisse ao menos juízo. Deus tenta
reunir todas as suas forças para refazer o mal feito, enche o peito, enrije a
musculatura, roga a seus ancestrais, mas os últimos poderes que tinha, havia
consumido na última criação, era tarde. Um desânimo mortal invade seu corpo,
agacha-se, e por fim, deita-se no rastro do lúmen das estrelas. Estava
inconsolável e febril. De longe, sem mais poder tocá-la e com o caleidoscópio do
tempo em punho, vê sua obra inteira sendo consumida por um cérebro que
projetado para substituir a si, não encontrou sequer condições para superar sua
fase mais primitiva e selvagem. E perdeu-se em vaidades.
FIM
Marcos Vinícius.