terça-feira, 12 de outubro de 2010

Descaminhos



Descaminhos



Depois que aposentara, adquirira o hábito de fazer umas caminhadas pela redondeza, pelas vizinhanças. Geralmente, levanta-se mais cedo que a mulher, que nem sempre se dispõe a acompanhá-lo por estas andanças. Mas não abandona o conforto e o calor da casa sem antes observá-la por umas duas longas vezes. Antes de levantar-se, quando as primeiras luzes da manhã invadem a escuridão do quarto, aprecia o amanhecer em seus lábios dormentes e em seus olhos fechados. As rugas incipientes que afloravam em seu rosto tornava-a mais próxima, mais cúmplice, sinais dos tempos, que por estas vidas, trilharam. Era bela e a admirava. Levanta-se vai até o banheiro e a cozinha e volta, outra vez ao pé da cama, para apreciar a mulher, que já acordava. Esperava-a despertar e lhe dizia algumas palavras otimistas. Estava satisfeito por estar ali, e principalmente agora, que com a aposentadoria, não precisava mais prender-se sistematicamente aos horários e à escravidão dos relógios. O que não quer dizer que já não tivesse uma rotina, pois às vezes, acabava por fazer as mesmas coisas nos mesmos momentos, em função dos costumes e dos hábitos que se ia adquirindo. Mas se tinha algo de que se gabava, era de não mais carregar as horas no punho, coisa que parece ter feito uma vida inteira. Sem tirar os olhos da mulher, afasta-se e vai à janela ver como anda o tempo.


Nada havia naquela manhã que pudesse ser muito diferente das outras. Levantou-se, preparou o lanche, duas fatias de pão e o resto do suco que havia sobrado da refeição de ontem; lavou o rosto, escovou os dentes e mirou-se no espelho. Já não era mais o jovem que há muito não encontrava em sua imagem refletida, mas via-se não como um homem velho, mas alguém que tivera a oportunidade de aprender muito com a vida. Considerava-se um sujeito experiente e que ao longo dos anos pudera acumular algumas sabedorias. Deixa a mulher na cama, pois esta ao acordar, queixa-se de um incômodo mal estar, e resolve dormir mais um pouco, para ver se o sono da manhã, possa quem sabe, revigorar-lhe, proporcionar mais ânimos. Ele aproxima-se para despedir-se e pousa-lhe na testa um beijo quente e afetuoso. Ela parece reconfortar-se. Após vestir-se confortavelmente para a caminhada matinal, rotineira, apaga as luzes e sai para a rua. Lá fora, o dia já estava bem claro.


As primeiras almas com as quais encontra são seus antigos vizinhos. A senhora do lado, que acordava bem antes das manhãs, ajeitava um pouco a casa, enquanto esta não havia recebido ainda, a luz do dia, e logo em seguida, apressadamente, corria para regar as flores e plantas, que sempre cultivara em seu extenso jardim. Eram muitas as espécimes, as mais variadas formas e tipos, cores conhecidas e inimagináveis, uma infinita biodiversidade, cultivada com extremo rigor e uma disciplina religiosa. Não havia dia, qualquer que seja, de feriados ou festas, que a impedisse de cuidar de sua vasta flora. Seus olhos brilhavam. Ele olhava-a com grande delicadeza, admirava-a pelo seu trabalho com mudas e folhas. A felicidade com que a mulher dedicava-se ao ofício fazia, com que no fundo, aquela manhã, parecesse ser mais alegre. Ele enchia os pulmões, e quase de uma vez, inalava todos os aromas que suas narinas conseguiam captar. Aproxima-se da mulher, e deseja-lhe que tenha um bom dia. É um vizinho generoso. A senhora responde-lhe entusiasmada, com um frenético aceno com as mãos. Não são poucas as manhãs, em que esta rotina se repete. Mal retoma seus passos e encontra-se com um outro vizinho, outro antigo companheiro das primeiras horas do dias, geralmente, é apenas neste horário que se encontram, pois anos e anos de trabalho, seja de um ou de outro, acabaram por afastá-los definitivamente em outros momentos do dia. Agora, com a aposentadoria, é que passa a encontrá-lo mais vezes, parando mesmo, em algumas ocasiões, para conversarem um pouco. A conversa, na maioria das vezes, não se estendia muito, mas os cumprimentos e as trocas de gentilezas eram freqüentes. Falavam amenidades, discutiam problemas da vizinha, o buraco da rua, a lâmpada do poste que não parava de piscar, fazendo vultos na noite, e os movimentos dos carros, que eram às vezes, violentos e velozes. O que muito motiva as conversas, provavelmente, é o fato de quase sempre estarem de acordo, comungarem muitas crenças e princípios, raramente apresentam divergências, e o desfecho de seus breves diálogos era sempre acompanhado de sorrisos e apertos de mão. Apesar desta proximidade, não era sempre que se punham a revelar suas intimidades ou coisas da vida privada. A proximidade territorial que a vizinha lhes impunha, aconselhava certa distância no que diz respeito a suas vidas pessoais. Nos últimos meses, é que tem tido mais tempo para dedicar-se as conversas, e pelo que se recorda, apesar de tantos anos, tendo-o como vizinho, não se lembra de ocasião em que puderam trocar idéias e informações com tanta freqüência. Mas se havia algo que os aproximava mais, portando-se quase como duas crianças, eram quando o cachorro do colega, vinha ao encontro dos dois. Era um animal extremamente amável, tinha um jeito dócil e seus olhos despertavam compaixão. Assim que se reunia aos homens, sentava-se entre eles, como se quisesse se inteirar também do que há um bom tempo debatiam. Imediatamente os vizinhos corriam-lhe as mãos por entre os pelos. O cão fazia-lhes as graças e parecia declarar-se amigo. Após tantos encontros afáveis, o cão certamente possuía alguma consideração pelo vizinho. Era o que mostrava sempre, nunca o importunava ou rosnava ameaçador. Agora, que possuía mais tempo, queria aproveitar melhor os momentos, cansou-se de tanto correr, da casa ao trabalho, do trabalho a casa, uma vida inteira. Sentia, que de certa forma, abria outro olhar para o mundo. Percebia que nunca possuíra tanta tranqüilidade, para deitar um olhar mais prolongado sobre as coisas e as pessoas. Por isso talvez, tenha resolvida caminhar pelas manhãs. Queria aproveitar melhor os dias, todos que ainda teria pela frente. Com mais tempo para si, e sem as amarras do trabalho e dos horários, podia apreciar mais detidamente a bela mulher que o acompanhou por anos e anos a fio, a vizinhança, com a qual sempre se dera muito bem, as flores da casa ao lado, e aquele cão generoso, que parecia querer lhe fazer a guarda.


O que fazia diariamente, já há mais de três semanas, de forma fiel e assídua, antes de pegar o embalo da caminhada, era visitar o amigo de muitos anos que encontrava-se gravemente doente. Fazia questão de estar a casa, que ficava a poucas quadras da sua, onde conversava com a irmã do enfermo, inteirando-se detalhadamente da evolução do quadro clínico e das mazelas da doença. Mas não contentava-se com isto apenas, e queria sempre ajudar. Falava com o homem, alguns poucos anos mais velhos que ele, relembrava os bons momentos que viveram juntos, afinal se conheciam desde a juventude, e muitas histórias tinham para trocar. Mas o homem não se mexia, não esboçava qualquer reação. Seus olhos pareciam boiar pelas órbitas e mirar para um ponto onde seus interlocutores não podiam enxergar, quase não piscava. Não podemos saber se entendia o que estava a se passar. Não havia como avaliar o seu grau de consciência. Estava inerte. Apenas o olhos, fixos, luminosos, pareciam demonstrar algum sinal de vida. O suor escorria-lhe pela face, ensopando seus poros, transformando suas rugas em longas correntezas de água salgada. O homem parecia transbordar ou afogar-se em si mesmo. Por mais que lhe trocassem as roupas, estava sempre encharcada, a febre talvez lhe queimasse os ossos, brasas acessas, que deixavam aquele corpo em chamas. Generoso que era, o velho amigo, cuidadosamente, molhava o lenço na água morna, que havia colocado na mesa ao lado, e limpava seu rosto, como a aliviar-lhe o sofrimento, e assim o fazia com grande emoção, pois era com profunda tristeza que via o antigo companheiro definhar. A irmã, que cuidava daquela pobre alma, sentia-se agradecida com a iniciativa do amigo, e sempre por um bom tempo, deixavam-nos a sós, pois tinha a sensação que o irmão sempre melhorava um pouco após a visita cordial e diária. Cada vez que vai à casa do amigo encontra-o pior, e pelos vistos, nem a bondade alheia nem o rigor da medicina terão como salvar aquela pobre e miserável alma. Mas como já sente o sol esquentar um pouco, percebendo quão alta vai a manhã, resolve então despedir-se da casa e ir, finalmente, à caminhada. Leva outra vez o pano molhado sobre a testa do homem, apalpa-lhe os cabelos, deposita algumas palavras breves em seus ouvidos, e sai do quarto. Já à porta, despede-se da mulher, que amavelmente lhe agradeceu pela dedicação e cuidados. Abraça-a e diz que no dia seguinte estará de volta.


Após alguns minutos de caminhada a passos largos, quando o corpo começa a aquecer-se, a face corar-se, e as pernas tornarem-se mais leves, distanciava-se já algumas quadras de sua vizinhança mais próxima. Atravessa ruas, cruzamentos, anda pelo meio dos carros, até chegar a uma região, onde a estabilidade das calçadas e as árvores frondosas, pareciam proporcionar melhores condições para se realizar um exercício aeróbico, desenvolvendo as musculaturas, e a capacidade dos pulmões. Além do que, era um local mais tranqüilo, com uma quantidade quase rarefeita de veículos e pedestres, onde podia se dar ao luxo de exercitar também os braços, levantando e flexionando-os sem chamar muita atenção. Ali revigorava seu ritmo, e entregava-se aos pensamentos. Era uma boa ocasião onde refletia sobre a vida, a passada, a presente, e as que pretendia almejar. Era um homem de sonhos. Na medida, em que o sangue acelera-se em suas veias, as batidas do coração punham-se ao compasso dos pés e pernas e renovava o ar dentro de si, desenvolvia projetos, tinha idéias, traçava metas. Acreditava mesmo já ter tomado grandes decisões durante estas andanças matutinas, e possuir sabedoria.


Ao entrar pela chamada alameda das flores, uma rua estreita, onde os moradores, fazem questão de deixar as casas sempre pintadas, e a calçada bem florida, vê uma criatura muito bem agasalhada encostada sob uma árvore, que parece não se afligir muito com o calor que já àquela hora fazia. O sujeito, com roupas escuras, confundia-se com os troncos das árvores, que muito próximas ficavam umas das outras. Naquele momento, era o único com quem teria que dividir aquela rua. Sem que percebesse, reduz ligeiramente o ritmo de seus passos para observar melhor aquela figura, que fica a cada passo, mais próxima. Difícil ver seu rosto, pois usava blusas cumpridas e gola alta, que tampava-lhe os braços, o pescoço e quase toda a cabeça. O chapéu de abas largas escondia o pouco que a blusa deixava destampado. As mãos estavam enfiadas nos bolsos e as pernas protegidas com botas de cano longo. Ao aproximar-se do que provavelmente era um homem, este se mexe, e da alguns passos ligeiros em sua direção. Tem os passos curtos e muito rápidos, suas pernas eram pequenas. Um encontro parece ser inevitável. Aproximam-se, curiosos, e postam-se, frente a frente. Como vinha já de uma longa caminhada, ao parar, parece corar-se ainda mais, o suor começa a correr pela testa e cai em seus olhos. Leva a blusa ao rosto, secando-o, possibilitando ver melhor o que tinha diante de si. O homenzinho parece evitar um olhar direto, esquiva-se, e não se deixa ver, de todo. Vira-se de lado e faz as saudações. Olá, és um homem forte e vê-se logo, que sábio também. Nestas idades, não é todo mundo que se põe a caminhar desta forma. Vê-se que preocupas contigo, e pelos vistos, investes de fato, em uma vida longa. Sim, como agora tenho tempo pelas manhãs, não perco a oportunidade de fazer o que faço. Faz-me bem. Estava a observar-te, desde que despontaste ofegante, daquela esquina lá embaixo. Aprecio a ti, não apenas pela tua disposição, mas pela vitalidade que parece carregar, além do mais, percebo que és um homem generoso, é amigo dos animais e cuida dos doentes. Ditas estas palavras, calam-se. Um silêncio aterrador prostra-se entre eles. As pernas, que vinham aquecidas pela caminhada, gelam-se e ficam endurecidas. Mas que diabos, como podes saber algo a meu respeito se tenho a certeza de nunca tê-lo visto pela frente? Quem és, afinal e o que queres? Como sabe do meu afeto pelos animais e que tenho um grande amigo doente do qual faço questão de dedicar cuidados? O homenzinho dá um giro em volta da árvore, observa-o de cima em baixo, em seguida, aproxima-se, afasta-se, e por fim, baixa a cabeça. Sim, eu te conheço, mesmo que tu não conheças a mim. Pode ser a vida assim, às vezes. Muitas das vezes, conhecemos alguém uma vida inteira, sem que ela sequer perceba nossa presença ou mesmo nossa existência. Não é assim com os famosos e seus fãs? Com as paixões platônicas? Não é lá com o que deva se preocupar. Na verdade, conheço-te profundamente, e por conhecer-te, é que resolvi então, vir ao seu encontro. Eu estava lhe aguardando. Mas o que queres afinal? Quem és? Indagava seu interlocutor com a voz trêmula. Estava visivelmente apavorado. O suor na camisa começava a esfriar e um calafrio percorria seu corpo dos pés a cabeça. Vamos então, direto ao assunto, pois na realidade também não tenho muito tempo a perder. Você não será a única visita que farei por hoje, apesar de ser um contato bem aguardado. Na verdade, venho fazer-lhe uma oferta. Uma grande oferta, e peço-lhe que não a recuse de imediato, sem antes ponderar, pensar duas vezes, pois a boas oportunidades não nos batem à porta por muitas vezes. O que pretendo de ti? Ah, é simples. Quero sua alma, sim, comprá-la com uma oferta generosa e praticamente irresistível. Preciso muito de almas como esta que aí carregas e posso lhe oferecer muito. Ora, deixe de bobagens, estás a divertir-se às minhas custas. Sabe muito bem que não é tudo que podemos comprar, ou encontrarmos a venda. Não me amoles mais, irei prosseguir meu caminho. Calma homem, ainda não disse tudo. Vou comprar-lhe a alma. A ti não faltará riqueza ou poder, dinheiro não é coisa da qual terá que se queixar, poderá viver de viagens, benefícios, privilégios, posses e muitos bens materiais. Você será bajulado e não haverá portas de oportunidades que não se abrirão para você. Não é algo de que devemos nos furtar, sem ao menos pensar duas vezes. Sabes aquele velho sonho que sempre acalentaste e que jamais pode se realizar, pois nunca as finanças permitiram tanto? Talvez tenha chegado a hora. Dar-te-ei um tempo para que dialogues consigo próprio, não precisa resolver de imediato. Dialogue lá com teus botões, seu eu interior, seu coração, invoque sua consciência, amanhã saberei. Dizia com o dedo em riste, e aparentemente sem tocar com os pés o chão, movia-se rapidamente, parecia inquietar-se. Amanhã, quando acordares, encontrará sobre a mesa do quarto, uma grande barra de ouro, é o meu sinal. E será tua, para experimentar a minha oferta, e para ver como não estou de brincadeiras. Aí, aguardarei sua contrapartida. Mas por hoje, não tomarei mais seu tempo, daqui estou de saída. Tem algo que gostaria de dizer, adiantar-me? O homem estivera completamente enrijecido enquanto ouvia. Não lhe ocorria ter que responder qualquer coisa agora. Os músculos da face, com o suor já seco, estavam paralisados. Não imaginava como poderia pronunciar qualquer palavra, além do mais, o ar parecia não querer lhe sair dos pulmões. Não respondeu. Vejo que estás a refletir, não tenha pressa. Amanhã, quando o sol estiver a despontar, encontrará então, o meu tesouro, um adiantamento, dentre outros que ainda estarão por vir. Até o meio dia, aguardarei a sua resposta, pois a partir daí, tenho outros negócios a resolver. O homenzinho dá um rápido rodopio, sai a girar entre as árvores, desaparecendo, sem deixar vestígios. Desaparece como se nunca um dia houvesse existido. Como se mais não fosse, um sonho daqueles que temos acordados, uma breve alucinação, um delírio repentino, mas as pernas agora frias, não tinham mais a disposição para a caminhada, sentia-se exausto. Aquela aparição havia deixado-o transtornado. Enche o peito em busca de fôlego e um forte odor de flores entra em suas narinas. Sente-se um pouco tonto. Muito lentamente, como se as pernas carregassem um peso que não fosse apenas o seu, põe-se a andar. Sentia-se indisposto e resolve voltar para casa.


Ao ouvir o ruído na porta, a mulher vem ao seu encontro. Ao vê-lo, entranha-o. Está um pouco abatido homem, andou vendo assombrações? Ora, deixe de bobagens, não me sinto muito bem, o sol hoje parece mais quente. Após o almoço, vou deitar-me um pouco. Mas não se preocupe, é apenas um mal estar passageiro, nada que alguns minutos de cochilo não possam resolver. Senta-se, serve-se, e come silenciosamente, com os olhos fixos na mesa, mecanicamente, sem sequer olhar para o prato. Após a refeição, vai até o quarto e pede à mulher que o deixe sozinho, que não o incomode, pois precisa descansar. A mulher resmunga baixinho, sente-se contrariada, mas respeita o desejo de seu esposo, e vai ler o jornal.


Ele senta-se na cama e permanece por um bom tempo, completamente imóvel, na verdade, não tem tanta vontade de deitar-se, mas ficar a sós, tentando entender o que se passava. Desde que cruzara com aquela coisa, parece ter perdido a expressão. Sentia que a face não refletia emoções, sensações, como se estivesse condenado a ter um rosto de pedra, onde não mais lhe ocorressem o riso, o choro, ou qualquer perturbação. Seria uma face única, fosse ante os mares mais navegáveis e calmos, ou perante os tufões e terremotos, que lhe sangrassem a alma. As coisas pareciam não fazer muito sentido. Levanta-se, repentinamente, e liga a televisão. As imagens e as falas desfilam diante de seus olhos e ouvidos, mas estes não lhe dão atenção. Estão indiferentes. Pouco se movem. As imagens são apenas luzes, que se alternam em cores e ritmos diferentes, o som ininterrupto é quase inaudível, um prolongar de ruídos, que não diz coisa alguma. Talvez as paredes fossem mais receptivas, naquele momento, as informações e propagandas que o aparelho veiculava. Assim, permaneceu por muitas horas sem se dar conta do que ocorria ao redor. Encostado na cama, imobilizado, o rosto duro, iluminado pelo televisor, que enchia o quarto de sons e luzes. Quando deu por si, já eram altas horas da madrugada e a mulher já deitara e adormecera a seu lado. Ele não havia percebido.


Deita-se, mas os olhos não conseguem fechar-se. Afinal daqui a algumas horas, quem sabe, a barra de ouro talvez apareça sobre a mesa. Este pensamento muito o perturba, faz suar frio, e uma dor fina e perfurante, percorre o todo o corpo, partindo do estômago. O coração palpita acelerado. Não adormeceria. Levanta-se e posta-se à mesa, onde em breve, a ser verdade o encontro que acreditava ter tido, uma riqueza considerável estará à sua disposição. Mesmo faltando quase duas horas para que as primeiras luzes do dia trouxessem a manhã, não tiraria os olhos daquela mesa, pois caso o ouro aparecesse mesmo, gostaria de saber como ele chegaria. E ali permanece, tomado de uma ansiedade que não consegue controlar. Os olhos pesam, e às vezes, torna-se difícil segurá-los, e foi em uma destas piscadelas, em que a barra de ouro, reluzente, pesada, apareceu. Não era possível. Ali estava. Como aparecera? Era incrível. Bastou uma piscada, única, para que o tesouro estivesse ali. Acondicionou a barra dourada entre os braços, abriu a porta do guarda roupas, e a escondeu no fundo da última gaveta. Puxou umas fronhas e meias para que o seu tesouro ficasse completamente invisível. Vestiu rapidamente suas roupas, antes que a mulher despertasse, abriu lentamente a porta, e foi para a rua.


Naquela manhã, havia chegado mais cedo que a vizinha das flores. Irritou-se ao ver seu jardim. Rapidamente voltou a casa e, silenciosamente, pegou um tesourão de jardinagem, enfiou no bolso um pote que havia apanhado de cima do armário, e sem que esta percebesse, observou a mulher, que apresentava um sono profundo. Aproveitou então, a ocasião, para observá-la mais de perto. Admirou-se, pela primeira vez, por considerá-la sempre bela. Olhou, olhou, e intrigou-se. Era feia, muito feia. Foi até à frente do jardim, e certificou-se que a rua ainda estava vazia, não havia quem desse por sua presença. Num ímpeto, invade a propriedade da vizinha, abre afoitamente a grande tesoura, e arranca todas as flores, uma a uma. Sabe que ainda tem alguns minutos antes que a senhora apareça. Abre a boca enorme da tesoura, que vai fazendo uma verdadeira limpeza no território, engole as flores pequenas, as grandes, algumas dilacera as pétalas, outras arranca o caule e a raiz. Assim o faz afoitamente, sem vacilar ou demonstrar qualquer piedade. Realiza uma verdadeira devastação, sem sequer estranhar a si. É tomado de uma sensação de fúria, e não se tranqüiliza enquanto não vê as flores todas ao chão. Solta um longo sorriso e gargalha silenciosamente de satisfação. Sente um prazer sem igual. Ao concluir o trabalho, enfia as mãos no bolso e retira o pote que há pouco havia guardado. O rótulo, uma pequena caveira vermelha, indicava o que havia no interior do frágil pote, veneno. Vai em direção à casa do vizinho, dono do cachorro. Entra pela lateral, onde o carro do proprietário estava estacionado, e anda se escondendo por sob as folhagens. Já dentro da garagem, encontra a tina onde o cão bebe água, que estava cheia. A água estava clara, limpa, provavelmente havia sido colocada ali não há muito tempo. Era água fresca, que certamente iria matar a sede do animal, assim que seu dono abrisse a porta. Abre o pote, que segura firmemente entre as mãos, e derrama na tina, todo o seu conteúdo. Levanta a tigela e a imprime um movimento circular, para espalhar o pó verde que havia se acumulado no fundo. Dá algumas voltas na água, e rapidamente o veneno se dilui. Já não tinha mais tempo. Não faltava muito para que os vizinhos saíssem de suas casas.


Em seguida, resolve afastar-se da região. Distancia-se de casa e anda pela cidade, cortando ruas, avenidas, cruzando praças, sem saber ao certo, onde queria chegar. Precisava andar, sentia-se excitado, mas mal repara nos lugares aonde ia. Andava, andava. O sol da manhã já lhe corava os braços e ia alto. Uma sensação de formigamento toma todo o seu corpo e os braços e as pernas parece comandarem-se sozinhas. Lembra-se do amigo doente. Era preciso vê-lo. Aperta os passos em direção à sua casa, e atravessa a cidade novamente. Lá chegando, faz soar a campainha e a irmã do amigo, prontamente vem lhe atender. Ele hoje parece estar melhor, diz. Desde que saíste ontem, vem esboçando alguma reação. A febre baixou e pude perceber um raro brilho nos olhos. Venha, entre, ele provavelmente o aguarda. A irmã, como sempre faz, acompanha-o até o quarto, e em seguida, retira-se, deixando-os a sós. Ele lentamente aproxima-se do amigo. A mulher parece ter razão, sua aparência hoje é bem melhor. Aproxima-se mais. Os olhos do doente parecem buscá-lo, mas ele não lhe dá confiança. Após um enorme esforço, consegue arrastar a mão trêmula pela cama e repousa-a sobre as mãos do visitante. Este se safa do contato abruptamente, a tentativa de aproximação lhe causa um grande desconforto e afasta-se. Sobre a porta do quarto, um grande relógio, mostrava-lhe as horas. Seu ruído atormentava-o, tornando-se cada vez mais alto, ensurdecedor. Não conseguia ouvir outra coisa. Punha as mãos nos ouvidos e não obtinha resultados. Era enlouquecedor. O ruído dominava todo o ambiente. Num ímpeto, pega a toalha que sempre usava para aliviar o fogo que queimava o amigo, e lhe aliviar a febre, e dá-lhe algumas voltas, enrolando-a, como se fosse uma corda. Aproxima-a do rosto do homem, e a princípio, lhe retira o suor. Em seguida, leva a toalha enrolada em direção ao pescoço, envolvendo-o. Segura firme as duas pontas da corda improvisada e a pressiona sobre a garganta do homem, que começa a sufocar-se. Olha para o relógio e dá a estrangulada definitiva. Era meio dia.




Marcos Vinícius.

sábado, 2 de outubro de 2010





Faz-se pânico geral quando o assunto é o envelhecimento. Mas há um lado bom ao percebermos a ação que o tempo imprimiu sobre nós. Seja vendo-nos mais maduros, testemunhos de uma história já de média duração, seja percebendo o processo da vida como uma revelação.

Marcos Vinícius.